sexta-feira, 3 de junho de 2011

O macaco e a onça, uma fábula sertaneja

Ilustração de Severino Ramos


Desde que o geólogo canadense Charles Frederick Hartt escreveu o ensaio pioneiro Amazonian tortoise miths, publicado em inglês, no Rio de Janeiro, em 1875, muitos outros estudiosos já foram a campo em busca de material etnográfico, reunindo contos de animais, que supunham ser de origem indígena. A coletânea de Hartt trazia oito histórias do jabuti, a tartaruga amazônica do título, cumprindo o papel de animal mais fraco que derrota o mais forte por meio da astúcia. Um ano depois, viriam a lume as fábulas coletadas pelo general Couto de Magalhães e reunidas no livro O selvagem, publicado em tupi e em português.

  O exemplar que reproduzo, extraído do livro Contos e fábulas do Brasil (Nova Alexandria), O macaco e a onça, contrapõe a esperteza do animal mais fraco à estultícia do mais forte.
 O livro Contos e fábulas do Brasil será lançado dia 20 de agosto, na Livraria da Vila da Fradique Coutinho.


Os bichos fizeram uma festa, e a onça convidou o macaco. Ela pensava num jeito de almoçá-lo. Ele, que de besta não tinha nada, pensou em recusar. Mas, refletindo, disse:
— Não posso, amiga onça; estou muito doente para caminhar, mas se você me deixar montar nas suas costas, eu vou.
E tanto o macaco insistiu que a onça acabou aceitando. Aí o macaco começou a fazer exigências:
— Então deixa eu botar um bichinho nas suas costas.
— Ah! Já quer me botar sela? Tá bom, eu deixo.
— Agora, deixa eu botar um bichinho na sua boca.
— Ah! Já quer me botar brida pra tirar tirão? Tá bom, eu deixo.
— Agora, deixa eu botar aquele bichinho no meu pé.
— Ah! Já quer calçar espora? Tá bom, eu deixo.
— Agora, deixa eu pegar aquele bichinho que bate nas costas.
— Ah! Já quer usar chicote? — a onça refugou, mas também acabou aceitando: — Tá bom, eu deixo.
E o macaco se mandou para a festa, encalcando a espora na onça.
Quanto mais ela pulava mais o macaco descia-lhe o chicote no lombo. Quando chegaram, a onça já estava virada no bicho. O macaco desceu e a amarrou no mourão. O malandro entrou no salão e sambou a noite toda. Depois comeu um grande pedaço de carne e atirou os ossos para a onça, que, retada pelo vexame, começou a chamar:
— Vem logo, amigo macaco!
— Vou hoje, vou amanhã! Vou hoje, vou amanhã!
Quando o macaco resolveu ir, o dia já estava amanhecendo. Então ele chamou os outros bichos:
— Vem, gente, orear a onça pr’eu montar.
Depois montou e saiu em disparada, tão rápido que bateu num pau, caindo macaco pra um lado, sela pra outro, deixando a onça livre. A onça, então, o ameaçou:
— Vou te esperar na bebida, amigo macaco! — e ficou montando guarda na beira do córrego.
Passou o tempo, e o macaco estava morto de sede, mas não ousava se aproximar do lugar com medo de a onça vingar a desfeita. Aí o macaco achou um jeito de enganá-la de novo: pegou umas cabaças e um machado e passou perto da amiga, que lhe indagou:
— Aonde vai, amigo macaco?
— Vou ali furar umas abelhas.
— Então traz um pouco de mel pra mim.
— Trago sim, amiga onça.
O macaco encheu as cabaças de mel e a algibeira de espinho.
Chegando à bebida, disse pra onça:
— Fecha os olhos e abre a boca.
Ela desconfiou, mas o macaco despejou um pouco de mel em sua boca e, assim, enganou a tonta, que pediu mais:
— Mais um pouco, amigo macaco.
— Lá vai! — disse o macaco, e despejou todo o espinho na boca da onça, que, engasgada, saiu em disparada, deixando a bebida livre para o macaco, enfim, matar a sede.
Jacinto Farias Guedes,
Brejinho, Igaporã, Bahia.

Nota (por Paulo Correia)
Classificação: ATU 72 (O coelho monta a raposa) + Hansen **74 D (O coelho tem sede e quer beber num rio guardado pelo tigre)
Versões: (para o ATU 72) 5 africanas; 14 brasileiras; (para o **74 D) 4 portuguesas;
6 africanas; 31 brasileiras.
Nota: A primeira parte deste conto é nitidamente afro-brasileira. A segunda parte (com um coelho besuntado com mel e coberto de folhas para tentar enganar o predador que está de guarda ao rio), embora exista em Portugal, está mais próxima das variantes africanas, em que a estratégia de dar mel ao guarda é crucial para o êxito da manobra.


Jacinto Farias Guedes, nascido em 1930, na zona rural de Igaporã, sempre viveu da lida na roça. Católico, é irmão de Manoel Farias Guedes, já falecido, que também figura entre os informantes do livro Contos e fábulas do Brasil. Jacinto tem predileção por contos de animais e de encantamento. A maior parte das histórias vem da infância. Ouviu-as, conforme depoimento, de uma pessoa chamada Chico Norberto. Figura também entre os contadores de história do livro Contos folclóricos brasileiros (Paulus, 2010).

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