quinta-feira, 14 de julho de 2011

Audiência do capeta

O guarda-sol, de Francisco de Goya (óleo sobre tela)


AUDIÊNCIA DO CAPETA

Vou-lhe contá um causo sucedido.

O causo é o seguinte e o seguinte é este:

Vivia noutros tempos no sertão um casal, cujo casal vivia tão bem, que nem Deus c’os anjo. Causava inveja a todo mundo de arruparado que andava. Vai, sinão condo, pareceo em casa uma rataria, que era rato pru castigo, rato prus riba do tempo, que não houveras mãos a medi.

Roupas, comestive... tudo destroçado, inté os donos da casa j’andava c’os pé roído e sem podê achá um remédio pra simiantes praga em tembos de ficá, marido e muié, tudo paiêta, ambos los dois. Um dia pariceu na dita cuja casa um gatim preto, muito gordo, muito esperto, e começou logo a fazê muitas proeza, matano e fugentano os ratos. Ora, marido e muié ficaro num contentamento có gatim que não tirava ele da mão, alisando: meu gatim práqui, meu gatim prácolá. Era mêmo cumo um fio, tanto o amô cá da estimação. A casa, que andava numa ribusana, numa trevoada de malassombrada, estava sossegada.

Um dia o marido fêis uma viage e a premêra recomendação prá muié é o gatim. Assim qu’ele saiu, o gatim desapareceu. A muié coge ficou doida. Percurou o gatim por toda parte, remexeu pru todo los canto, inté plos vizim, e gatim de minh’alma. Dias ô dispois, chega o marido e a premêra coisa que progunta é o gatim. Coutou-lhe a muié o causo sucedido. Ela inda falava, e foi conde sinão conde, saiu o bichim de dentro do quarto de drumi, e miano piadoso, veio ocrreno topá c’o senhô, que, logo sentido, ficou muito aborrecido, veno o pobrezim esquileto de magro, de fome que stava c’ó colete apertado.

- Oras sta seos cóidado; muié! disse o marido. Tudo isso é pruqe saí de casa e você não fêis causo dele.

- Eu aprovo c’a vizinhança toda, marido, em cumas ele não se achou em parte alguma. Andei de codío atrais dele.

- Apois bem! Stá veno on’andava nosso gatim? Não me caia noutra con’d’eu viajá. Quem tem um bichim assim, né pra se tratá tão male. E desta vêis se passou-se.

Gatim continuou nas proeza e foi cresceno a cada dia engordano mais. O dono da casa que era muito resmelengue, mais muito trabucadô da vida e muito piritmo nas trabulança, teve que girá noutra viage daí a tempos, e novas recomendação à muié. Cumo da premêra vêis assim conteceu da segunda, logo que o homem chegô: mas porém, desta foi um bababá dos meos pecado, que coge c’a muié apanha no séro.

Acode, acode, aquéta, tei mão!... sempre os vizim apalacáro o baruio. Jaí as coisa anda azeda: um rem-rem-rem hoje, um zum-zum-zum amenhã, um dirê-eu, que virou um cataçá duma intriga dos diabo.

Nova nicicidade d’outra viage e nova recomendação e logo có principosto de, se não achasse o gatim cum’ele deixava ela le pagaria muito caro.

Ora, se bem disse, mió saiu. Gatim caiu no mato, virou tirira, logo que o home saiu. A muié, coitadinha, virou, remexeo, fêiz premessa a conto santo houve, escogitou por conto boraco das redondeza e vizim, responsou Sant’Antonho, percurou, indagou, revirou... e nada. Chega o marido e lá de longe foi logo, antes de sodá a muié, progutano por aqui.

- Cadêl-o, meu gatim, muié?

- Nosso gatim, meu marido...

Não acabou de falá, que o gatim, saino de den de casa, coge de rasto, foi miano piadoso s’enroscá entre as perna do seu sinhô, que acabava de s’apiá. Stava coge espirano de magro e de miséra. Antonce, o home não contou fiado não! Meteu-lhe o chicote que trazia na muié, deo-lhe pancadas de cego, fêiz artes de cabeça, quebrou-lhe um braço, abriu brechas na cabeça e espancou a coitadinha promode a bestage do gatim. Passou-se. Dias ô dispois do baruio, o home arrependeu-se de tê prucedido assim, e envergonhado, s’apaxonou... ele que vivêra tão bem có sua muié! Inventou por isso mêmo, outra viage; mas, desta feita, com tenção de nunca mais botá pé em casa.

Arrumou o saco e meteu cara na mundaça adoidamentes. Ora bens!

Nesse dia, viajou ele sem pará, de banzativo que andou, chegando muito tarde da noite debáxo de um pé de páo ramaiudo, que não teve tempo de vê quis páo era uma bonita gameleira. Encostou o saco nas raiz, e cansado, ali se ficou inté muito tarde; e sem sono se mardisse consigo da sua inigligente sorte.

Que conde sinão conde, repetino chegou aquela coisa, cumo um pato: vão! vão! vão!... xuá! em ribas na copa da gameleira, e quetou. Daí mais a pouco outra, daí mais outra e outros mais.

E começaro a conversá muito baixinho, de sorte que o home não entendia bem o que era, nem vê o que se passava, pruvia da escuridão. Aqui o camim fazia uma encruziada, e viu ele antonce que aquilo era a odiença do capeta. Que cum poucas chegou mais um c’um baruião. Era o maiorá. Stavam esperano por ele. E ferraro logo na conversação que se uvia:

- Que fizeste hoje?

- Eu atentei hoje um fio c’a mãe.

- Ora, ist’é nada. São pecado que o home perdoa; nada fizeste; e você?

- Eu arranjei uma briga, onde houve muito tiro e muita faca-fóra, cabeça rachada e muito sangue.

- Sempre serviu, mas porém, não são coisa de muita importança. Sempre o home perdoa. E você?

- Eu stou arrumano uma quenga entre dois irimão, mas, ainda não acabei.

- Muito bem! continue. E você?

- Eu arrumei sempre uma calunha entre dois compadre có duas comadre e um fio que ficou muito espraguejado, pruquê bateu no pai.

- Esta foi bem boa; mas são coisa... e o homem inda perdoa. E você?

- Eu estou atentando um resadô c’uma resadêra, in bens cumo um moço c’uma moça que já stá pra caí... fugino.

- Bem! bem! continua. E você?

- Eu stou trabaiano c’uma usurave que já robou metade d’uma fortuna.

- Ah! sim, bem feito! bem feito! Sempre o home custa a perdoá. E você?

- Eu stou cadijuvano um jogo c’umas bebedeira qu’é de nos trazê muito lucro.

- Muito bens! Trabaia, inséste mais inte o fim. E você?

- Eu sempre arranjei um que solicidou pru suas mão.

- Oh! Um caçadão! E você?

- Um hoje me vendeu-me a arma dele e me passou-me o arrecibo, escrivido có sangue dele, pramode ganhá uma demanda e pulá numa boa fortuna.

- Muito bem! Merece um plemo. E você?

Eu fis dois s’esfaquiá e se matá numa briga pramode uma herança, e o que ficou cum herdeiro era outro.

- Bens! Você é de tê um plemo. E você?

- Eu stou agarrado cum freguêis que stá comeno orfo em vida c’uma viúva.

- Muito estimo. Ist’é uma maravia. E você?

- Eu virei um home casado e stou reduzino outro que está coge virado, de encansinado que stá.

- Forgo muinto da nutiça. E você?

- Eu arrumei uma rua de muié que são nossa e que nos stão dano muita gente boa.

- São gente resmelengue: conde qu’é, qu’é mêmo. Muito bens; e você?

- Eu tão somente arrumei um que se casou duas vêiz. As muié são viva.

- Ah! essa são nojento. Já seio. Vôr mandá apariá a cama deles. Em todo causo, muito que bens! E você?

- Eu fiz um juiz dá hoje uma sentença injusta. Ilai muita castionação. O baruio é grosso, morre gente!

- Berabo! São dos que o home tem ódio. Bens! E você?

- Eu, coge nada. Hai muitos ano qu’eu ando de premenentes na rabada de um casá, que seguno se fala na língua deles por lá, vivia cumo os anjo no paraiz...

- Deixemo lá disso. Issaqui não se fala. Negoços de paraiz é pra lá cum eles; mas, bano...

- O negoço stava difirço e eu já stava dexano eles de partes, condo aconteceu a casa se enchê de rataiada. Eu, pan! pruveitei e virei um gatim e acabei cós rato e me tornei-me um gatim d’estimação.

O home qué muito giradô, conde saía de casa, logo mil recomendação fazia à muié. Eu, antonce, se me sumia e só parecia condo ele chegava de viage. Daí começou um desaprecate entre ambos los dois, o marido sempre jurano a muié. A principe eu era gordo, mais todas las vêis que ele chegava me achava tocano nas espinha. Na derradeira viage eu fiquei e pareci tão magro,qu’assim qu’ele foi me vendo-me, rompeu logo c’oela, deu-lhe muitos tabefe e chicotada e cum páo socou-lhe muitas porretada, quebrou-le um braço, rachou-le a cabeça, arrumou a trôxa e ganhou os páo na mudança, largou-le pr’uma vêis.

- Que debedabo! Berabo! muito bens! muito bens! brabo! brabo! Ora viva! Ist’é qu’é diligença e sabê fazê as coisa. Terá um grande plemo conde acabá có serviço.

Aqui o galo cantou: cacariocô!

- Escuta! disse o maiorá. Quis galo é esse qui cantou?

- É o galo pedrez!

- Cacariocô!

- Quis galo é aquele?

- É o galo china.

- Cacariocô!

- Este?

- É o galo musgo.

- Cacariocô!

- Esse outro?

- É o galo preto das canela amarela e a crista da serra.

- Está cabada a odiença. Alavanta a cumilidade! Houve antonce um tendepá de conversa e cada um foi saino: vão! vão! vão! vão!... cumo tinha chegado. Nisso o home que stava debáxo da gameleira tinha óvido tudo.

- Acão! seu méco! Ah! é assim, eim? Stá bom!...

E arrumou outra vêis a troxa e cortou pra casa, onde chegou de menhãs hora d’almoço brabo.

A muié, logo que o vio ficou muito indimirada e foi logo arrecebê ele c’oa mão na tipóia; mais porém, adiente dela correu o gatim miano muito, mas piadoso do que das outra vêis.

o homem apanhou ele, alisou ele e botou, ô dispois, no chão; mais porém, o gatim inrestou c’o ele, miano... miano... enroscano po las perna dele.

- Muié, ocê já deu de comê a nosso gatim? progontou ele c’a cara muito enfarruscada e percurano já um páo.

- Não! home. Já le tenho dito muitas vêis que ele se some, logo que você sae.

- Se some! eim? Apois, eu te torno amostrá e é já.

A muié veno o perigo, correu chorano; e ele apanhano um bom porrete, desandou com ança, mas porém, na cabeça do gatim, que deu aquele estouro que fedeu enxofre pru treis dias.

O dispois, foi ele, antonce, contá a muié o causo sucedido da gameleira da encrusiada.

Daquela data em diante foi ele vivê bem com sua muié, como dantes era.


(AMBRÓSIO, Manuel.
 Brasil interior)

Nota: Câmara Cascudo resumiu esta história nos Contos Tradicionais do Brasil e incluiu-a entre os contos do ciclo do demônio logrado. Aproveito e reproduzo a nota introdutória para a versão que recolhi em Serra do Ramalho, na Bahia, inserida entre os Contos e fábulas do Brasil. Há outro conto no mesmo compêndio, O gato preto, em que predominam elementos do ciclo maravilhoso ou de encantamento.

A nota abaixo refere-se ao conto O gato preto e a mulher maltratada.

O conto O gato preto e a mulher maltratada figura entre os religiosos por causa do episódio da intervenção demoníaca que provoca desavenças entre um casal. Câmara Cascudo reproduziu A audiência do capeta, colhida pelo prof. Manuel Ambrósio na zona do rio São Francisco entre Minas e Bahia. Lá, como na nossa história, a gameleira é o local escolhido para a sinistra reunião. Há uma superstição, ainda corrente no Nordeste, que sob esta árvore costumam aparecer assombrações. Talvez seja herança das sessões de entidades mitológicas — sob os carvalhos e outras árvores europeias — que o desaparecimento do paganismo transformou em demônios, no processo de acomodação das antigas crenças ao Cristianismo. No conto que coligimos, há até uma canção citando alguns dias da semana, com resquícios de velhas e desfiguradas crenças que sobrevivem do lado de cá do Atlântico.

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