quarta-feira, 30 de outubro de 2013

Contos folclóricos brasileiros

Sirvo-me deste espaço, criado para divulgar a obra Contos e fábulas do Brasil, para apresentar meu primeiro livro de recolhas de histórias tradicionais, Contos folclóricos brasileiros (Paulus Editora). Lançada em 2010, a obra já teve várias edições, foi selecionada para o Catálogo de Bolonha pela Fundação Nacional do Livro Infantil e Juvenil (FNLIJ), para o Programa Nacional Biblioteca da Escola (PNBE), em 2012, e para o programa Minha Biblioteca, da Prefeitura de São Paulo, em 2011. As ilustrações são de Maurício Negro, que assina o projeto gráfico com Eduardo Okuno.

O texto a seguir é o que abre a coletânea.

Contos folclóricos brasileiros

A importância do conto folclórico

Os contos folclóricos reunidos nesta coletânea, mais do que o esforço de preservação das nossas tradições populares, são peças de raro brilho literário. Alguns encontram ressonância na Índia dos Vedas[1]; outros, no Egito dos faraós. Há, ainda, os que trazem retalhos da mitologia greco-romana ou de narrativas da Bíblia. Portanto, é impossível pôr em dúvida sua “ancianidade veneranda”, como costumava dizer mestre Câmara Cascudo[2]. Diversão para crianças, entretenimento para os adultos após o trabalho, o conto folclórico conserva, também, informações de hábitos, costumes, ritos e mitos aparentemente desaparecidos ou esquecidos.

Os contos de animais, aqui reunidos e identificados às fábulas, trazem um esquema bem conhecido dos contadores e ouvintes: a onça sempre personifica o vilão e é irremediavelmente derrotada pelo coelho, pelo macaco, ou até mesmo pelo bode. A raposa, símbolo da esperteza, é lograda pelo urubu ou traída por sua teimosia quando não aceita o conselho do macaco. Este animal é associado à prudência (algumas vezes) ou à esperteza (sempre). A nossa versão de A festa no céu apresenta um sapo inoportuno que bem mereceu o castigo imposto pelo gavião.


Leitores da obra dos Irmãos Grimm certamente reconhecerão, nos contos maravilhosos (de encantamento), a Cinderela (Aschenputtel) da famosa antologia dos alemães na Maria Borralheira que integra este trabalho. Cara-de-pau, narrativa que pertence à mesma família, é a versão brasileira da Pele de asno, de Charles Perrault, da Pele de bicho, dos Grimm, e da Bicho de palha, de Câmara Cascudo. Os dois contos citados fazem parte do ciclo da Gata Borralheira, universalmente difundido. Mais fácil ainda é enxergar em José e Maria as personagens Joãozinho e Mariazinha (Hansel e Gretel). Na nossa versão, há uma sequência que faz do herói (José) uma reencarnação popular de Perseu, o salvador de Andrômeda. Na literatura de cordel, a segunda parte desta história está presente no clássico Juvenal e o dragão, do grande poeta Leandro Gomes de Barros (1865-1918). Guime e Guimar, que consta dos Contos populares do Brasil, de Silvio Romero – O homem pequeno –, é a clássica história da Filha do diabo, aqui retratado como um rei tão cruel quanto azarado. É um conto que lembra o ciclo mitológico de Jasão e Medeia, pois o herói só realiza suas tarefas mediante a intervenção mágica da amada. Em Grimm encontramos o mesmo motivo em Tamborzinho, embora neste conto a princesa seja prisioneira de uma bruxa.

Belisfronte se aproxima de A Bela e a fera, de Madame de Beaumont[3], mas possui um ancestral mais antigo: o conto Eros e Psiquê, que faz parte d’O asno de ouro, que o africano romanizado Apuleio escreveu no século II d.C. Os episódios de Belisfronte foram conservados, possivelmente na íntegra, pela transmissão popular: o pai faminto que oferece o filho à entidade benfeitora em troca de alimento; a convivência do herói com a companheira invisível e a perda motivada pela curiosidade ou violação de um tabu ou interdição; a busca da amada com a consequente ajuda dos animais, os auxiliares mágicos; o rei – ogre nas versões europeias – que tem a alma fora do corpo e, por isso, não pode ser morto. Esse rei é o soberano do Reino dos Confins, onde o herói encontrará a amada, que se esquecera completamente dele.

Os contos religiosos selecionados para este livro trazem desde o nascimento de Cristo, anunciado pelos animais, até as estórias onde São Pedro aparece como personagem cômica pagando sempre um alto preço pela desnecessária ou presunçosa teimosia. Ele é apresentado ora como glutão (A gulodice de São Pedro), ora como azarado (São Pedro e a questão das almas), acompanhando Jesus em suas andanças. Esses contos, que têm origem em evangelhos apócrifos ou em lendas pré-cristãs, são constituídos de elementos moralizantes, embora, em muitos casos, prevalece, puramente, o riso.

A coletânea ainda apresenta os contos novelescos, que trazem personagens dos contos maravilhosos envolvidos num contexto mais realista. A presença do maravilhoso, por vezes, resume-se apenas à crença na infalibilidade do destino. Este é o tema do conto A princesa e o filho da criada, que conserva remoto parentesco com o mito grego de Édipo, embora sem a carga trágica contida neste. Mesmo num conto desprovido do elemento sobrenatural, como Ingrata e Gemido, de nada adiantam os esforços do pai da moça para separá-la do amado. Na crença popular, as coisas acontecem porque, afinal, tudo já estava escrito.

Os contos jocosos (ou humorísticos) têm por objetivo provocar riso na audiência, embora um ou outro contenha alguma lição moralizante. Veja-se, por exemplo, A mentirosa, que encerra um sentido moral além da característica principal – o humor.

Os contos de fórmula, também são chamados lengalengas ou contos acumulativos. Os dois exemplos deste livro são conhecidos por suas inúmeras variantes. Mas, aqui, devem ser ressalvadas as características incomuns. Em A formiguinha, não há a neve que prende o pezinho da formiga, como nas variantes mais conhecidas do conto. O motivo de a formiga procurar sempre pelo mais forte deve-se ao fato de o Sol derreter a gordura que lhe foi aplicada no pé como curativo. Este conto é importantíssimo, pois reproduz em seu enredo a natural curiosidade infantil, que desencadeia a busca por respostas e conduz ao autoconhecimento, mesmo que a verdade expressa no final possa parecer cruel à primeira vista.

O rabo do macaco é outro conto amplamente divulgado. Esse macaco é diferente daquele dos contos de animais, pois, como a história se dá em cadeia, ele é apenas o elo entre os sucessivos episódios, ficando, portanto, numa função passiva.

Por último, foram reunidos os contos que não se enquadram numa classificação específica, mas que, por aproximação temática, podem ser relacionados entre os de exemplo. Reúnem desde o episódio inicial da famosa estória das Mil e uma noites, Ali-Babá e os quarenta ladrões (O olho maior que o corpo), até o embrião da lenda urbana da moça do cemitério (A namorada misteriosa). Ainda das Mil e uma noites, a História dos dois homens que sonharam, oriunda de um conto persa, que serviu de tema para O alquimista, de Paulo Coelho, reaparece no Ceará com o título O tesouro do matuto, registrado pelo poeta e folclorista Arievaldo Viana. O tema, como explica em nota o estudioso Paulo Correia, era conhecido na Pérsia (atual Irã) há cerca de 900 anos.

O conto folclórico na sala de aula

Todos os contos desta antologia foram colhidos diretamente da fonte mais pura: a memória popular. Resultam de um trabalho paciente, mas imprescindível. É um livro oferecido às crianças e aos jovens, como símbolo de esperança na preservação da nossa cultura, da nossa identidade. Mas também aos mais velhos, como sinal de agradecimento. Algumas histórias foram colhidas por ex-alunos, sob minha orientação, na época em que lecionava Língua Portuguesa no Colégio Joana Angélica, em Igaporã, sertão da Bahia. Por intermédio de dois deles, os gêmeos Lucas e Luan Flores, cheguei a Dona Jesuína, nascida em 1915, fonte importante para a efetivação deste trabalho.

O exemplo mostra que é possível a convivência da tradição mais genuína com as novas tecnologias. Devidamente orientado, o aluno das séries mais adiantadas pode pesquisar em sua comunidade, ou em sua família, histórias, lendas, adivinhas etc., numa pesquisa de campo que lhe abrirá as portas para um mundo novo e fascinante. Da boca para o ouvido, de geração a geração, a tradição é preservada. Das reuniões em volta da fogueira, em tempos recuados, às rodas de “contação” de estórias na sala de aula, o conto popular sobrevive à era tecnológica. As pessoas, aos poucos, vão redescobrindo a beleza da simplicidade naquilo que o estudioso alemão Heinrich Zimmer[4] define como “alimento espiritual dos povos”. E nessa troca – sim, troca, pois o hábito de contar estórias é mais do que a mera interação — todos saem ganhando.

Marco Haurélio

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[1] Os Vedas são os quatro livros sagrados que formam a base da religião e da cultura da Índia e foram escritos por volta do ano 2000 a.C. O mais antigo dos quatro é o Rig Veda. Os outros, Yajur Veda, Sama Veda, e Atharva Veda, foram escritos depois.

[2] O potiguar Luís da Câmara Cascudo (1898-1986) é considerado o maior folclorista brasileiro. Pesquisador da cultura popular, estudioso dedicado, deixou escritas obras fundamentais como Dicionário do Folclore Brasileiro (1952) e Contos tradicionais do Brasil (1946).

[3] Jeanne Marie Leprince, conhecida como Madame de Beaumont, nasceu em Rouen, França, em 1711, e morreu em 1780. Foi uma educadora voltada ao ensino das crianças. Mas o que a tornou conhecida foi a sua versão do conto de fadas A Bela e a fera, publicada em 1757 na revista Le Magasin des enfants (A revista das crianças), imortalizado em versões para o cinema
e no desenho animado produzido pelos Estúdios Disney em 1992

[4] 4 Heinrich Robert Zimmer era mitólogo e historiador da arte. Nasceu em 1890, em Greifswald, Alemanha, e morreu em 1943, nos Estados Unidos. Autor de As filosofias da Índia, A conquista psicológica do mal, entre outros.

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