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quinta-feira, 14 de julho de 2011

Audiência do capeta

O guarda-sol, de Francisco de Goya (óleo sobre tela)


AUDIÊNCIA DO CAPETA

Vou-lhe contá um causo sucedido.

O causo é o seguinte e o seguinte é este:

Vivia noutros tempos no sertão um casal, cujo casal vivia tão bem, que nem Deus c’os anjo. Causava inveja a todo mundo de arruparado que andava. Vai, sinão condo, pareceo em casa uma rataria, que era rato pru castigo, rato prus riba do tempo, que não houveras mãos a medi.

Roupas, comestive... tudo destroçado, inté os donos da casa j’andava c’os pé roído e sem podê achá um remédio pra simiantes praga em tembos de ficá, marido e muié, tudo paiêta, ambos los dois. Um dia pariceu na dita cuja casa um gatim preto, muito gordo, muito esperto, e começou logo a fazê muitas proeza, matano e fugentano os ratos. Ora, marido e muié ficaro num contentamento có gatim que não tirava ele da mão, alisando: meu gatim práqui, meu gatim prácolá. Era mêmo cumo um fio, tanto o amô cá da estimação. A casa, que andava numa ribusana, numa trevoada de malassombrada, estava sossegada.

Um dia o marido fêis uma viage e a premêra recomendação prá muié é o gatim. Assim qu’ele saiu, o gatim desapareceu. A muié coge ficou doida. Percurou o gatim por toda parte, remexeu pru todo los canto, inté plos vizim, e gatim de minh’alma. Dias ô dispois, chega o marido e a premêra coisa que progunta é o gatim. Coutou-lhe a muié o causo sucedido. Ela inda falava, e foi conde sinão conde, saiu o bichim de dentro do quarto de drumi, e miano piadoso, veio ocrreno topá c’o senhô, que, logo sentido, ficou muito aborrecido, veno o pobrezim esquileto de magro, de fome que stava c’ó colete apertado.

- Oras sta seos cóidado; muié! disse o marido. Tudo isso é pruqe saí de casa e você não fêis causo dele.

- Eu aprovo c’a vizinhança toda, marido, em cumas ele não se achou em parte alguma. Andei de codío atrais dele.

- Apois bem! Stá veno on’andava nosso gatim? Não me caia noutra con’d’eu viajá. Quem tem um bichim assim, né pra se tratá tão male. E desta vêis se passou-se.

Gatim continuou nas proeza e foi cresceno a cada dia engordano mais. O dono da casa que era muito resmelengue, mais muito trabucadô da vida e muito piritmo nas trabulança, teve que girá noutra viage daí a tempos, e novas recomendação à muié. Cumo da premêra vêis assim conteceu da segunda, logo que o homem chegô: mas porém, desta foi um bababá dos meos pecado, que coge c’a muié apanha no séro.

Acode, acode, aquéta, tei mão!... sempre os vizim apalacáro o baruio. Jaí as coisa anda azeda: um rem-rem-rem hoje, um zum-zum-zum amenhã, um dirê-eu, que virou um cataçá duma intriga dos diabo.

Nova nicicidade d’outra viage e nova recomendação e logo có principosto de, se não achasse o gatim cum’ele deixava ela le pagaria muito caro.

Ora, se bem disse, mió saiu. Gatim caiu no mato, virou tirira, logo que o home saiu. A muié, coitadinha, virou, remexeo, fêiz premessa a conto santo houve, escogitou por conto boraco das redondeza e vizim, responsou Sant’Antonho, percurou, indagou, revirou... e nada. Chega o marido e lá de longe foi logo, antes de sodá a muié, progutano por aqui.

- Cadêl-o, meu gatim, muié?

- Nosso gatim, meu marido...

Não acabou de falá, que o gatim, saino de den de casa, coge de rasto, foi miano piadoso s’enroscá entre as perna do seu sinhô, que acabava de s’apiá. Stava coge espirano de magro e de miséra. Antonce, o home não contou fiado não! Meteu-lhe o chicote que trazia na muié, deo-lhe pancadas de cego, fêiz artes de cabeça, quebrou-lhe um braço, abriu brechas na cabeça e espancou a coitadinha promode a bestage do gatim. Passou-se. Dias ô dispois do baruio, o home arrependeu-se de tê prucedido assim, e envergonhado, s’apaxonou... ele que vivêra tão bem có sua muié! Inventou por isso mêmo, outra viage; mas, desta feita, com tenção de nunca mais botá pé em casa.

Arrumou o saco e meteu cara na mundaça adoidamentes. Ora bens!

Nesse dia, viajou ele sem pará, de banzativo que andou, chegando muito tarde da noite debáxo de um pé de páo ramaiudo, que não teve tempo de vê quis páo era uma bonita gameleira. Encostou o saco nas raiz, e cansado, ali se ficou inté muito tarde; e sem sono se mardisse consigo da sua inigligente sorte.

Que conde sinão conde, repetino chegou aquela coisa, cumo um pato: vão! vão! vão!... xuá! em ribas na copa da gameleira, e quetou. Daí mais a pouco outra, daí mais outra e outros mais.

E começaro a conversá muito baixinho, de sorte que o home não entendia bem o que era, nem vê o que se passava, pruvia da escuridão. Aqui o camim fazia uma encruziada, e viu ele antonce que aquilo era a odiença do capeta. Que cum poucas chegou mais um c’um baruião. Era o maiorá. Stavam esperano por ele. E ferraro logo na conversação que se uvia:

- Que fizeste hoje?

- Eu atentei hoje um fio c’a mãe.

- Ora, ist’é nada. São pecado que o home perdoa; nada fizeste; e você?

- Eu arranjei uma briga, onde houve muito tiro e muita faca-fóra, cabeça rachada e muito sangue.

- Sempre serviu, mas porém, não são coisa de muita importança. Sempre o home perdoa. E você?

- Eu stou arrumano uma quenga entre dois irimão, mas, ainda não acabei.

- Muito bem! continue. E você?

- Eu arrumei sempre uma calunha entre dois compadre có duas comadre e um fio que ficou muito espraguejado, pruquê bateu no pai.

- Esta foi bem boa; mas são coisa... e o homem inda perdoa. E você?

- Eu estou atentando um resadô c’uma resadêra, in bens cumo um moço c’uma moça que já stá pra caí... fugino.

- Bem! bem! continua. E você?

- Eu stou trabaiano c’uma usurave que já robou metade d’uma fortuna.

- Ah! sim, bem feito! bem feito! Sempre o home custa a perdoá. E você?

- Eu stou cadijuvano um jogo c’umas bebedeira qu’é de nos trazê muito lucro.

- Muito bens! Trabaia, inséste mais inte o fim. E você?

- Eu sempre arranjei um que solicidou pru suas mão.

- Oh! Um caçadão! E você?

- Um hoje me vendeu-me a arma dele e me passou-me o arrecibo, escrivido có sangue dele, pramode ganhá uma demanda e pulá numa boa fortuna.

- Muito bem! Merece um plemo. E você?

Eu fis dois s’esfaquiá e se matá numa briga pramode uma herança, e o que ficou cum herdeiro era outro.

- Bens! Você é de tê um plemo. E você?

- Eu stou agarrado cum freguêis que stá comeno orfo em vida c’uma viúva.

- Muito estimo. Ist’é uma maravia. E você?

- Eu virei um home casado e stou reduzino outro que está coge virado, de encansinado que stá.

- Forgo muinto da nutiça. E você?

- Eu arrumei uma rua de muié que são nossa e que nos stão dano muita gente boa.

- São gente resmelengue: conde qu’é, qu’é mêmo. Muito bens; e você?

- Eu tão somente arrumei um que se casou duas vêiz. As muié são viva.

- Ah! essa são nojento. Já seio. Vôr mandá apariá a cama deles. Em todo causo, muito que bens! E você?

- Eu fiz um juiz dá hoje uma sentença injusta. Ilai muita castionação. O baruio é grosso, morre gente!

- Berabo! São dos que o home tem ódio. Bens! E você?

- Eu, coge nada. Hai muitos ano qu’eu ando de premenentes na rabada de um casá, que seguno se fala na língua deles por lá, vivia cumo os anjo no paraiz...

- Deixemo lá disso. Issaqui não se fala. Negoços de paraiz é pra lá cum eles; mas, bano...

- O negoço stava difirço e eu já stava dexano eles de partes, condo aconteceu a casa se enchê de rataiada. Eu, pan! pruveitei e virei um gatim e acabei cós rato e me tornei-me um gatim d’estimação.

O home qué muito giradô, conde saía de casa, logo mil recomendação fazia à muié. Eu, antonce, se me sumia e só parecia condo ele chegava de viage. Daí começou um desaprecate entre ambos los dois, o marido sempre jurano a muié. A principe eu era gordo, mais todas las vêis que ele chegava me achava tocano nas espinha. Na derradeira viage eu fiquei e pareci tão magro,qu’assim qu’ele foi me vendo-me, rompeu logo c’oela, deu-lhe muitos tabefe e chicotada e cum páo socou-lhe muitas porretada, quebrou-le um braço, rachou-le a cabeça, arrumou a trôxa e ganhou os páo na mudança, largou-le pr’uma vêis.

- Que debedabo! Berabo! muito bens! muito bens! brabo! brabo! Ora viva! Ist’é qu’é diligença e sabê fazê as coisa. Terá um grande plemo conde acabá có serviço.

Aqui o galo cantou: cacariocô!

- Escuta! disse o maiorá. Quis galo é esse qui cantou?

- É o galo pedrez!

- Cacariocô!

- Quis galo é aquele?

- É o galo china.

- Cacariocô!

- Este?

- É o galo musgo.

- Cacariocô!

- Esse outro?

- É o galo preto das canela amarela e a crista da serra.

- Está cabada a odiença. Alavanta a cumilidade! Houve antonce um tendepá de conversa e cada um foi saino: vão! vão! vão! vão!... cumo tinha chegado. Nisso o home que stava debáxo da gameleira tinha óvido tudo.

- Acão! seu méco! Ah! é assim, eim? Stá bom!...

E arrumou outra vêis a troxa e cortou pra casa, onde chegou de menhãs hora d’almoço brabo.

A muié, logo que o vio ficou muito indimirada e foi logo arrecebê ele c’oa mão na tipóia; mais porém, adiente dela correu o gatim miano muito, mas piadoso do que das outra vêis.

o homem apanhou ele, alisou ele e botou, ô dispois, no chão; mais porém, o gatim inrestou c’o ele, miano... miano... enroscano po las perna dele.

- Muié, ocê já deu de comê a nosso gatim? progontou ele c’a cara muito enfarruscada e percurano já um páo.

- Não! home. Já le tenho dito muitas vêis que ele se some, logo que você sae.

- Se some! eim? Apois, eu te torno amostrá e é já.

A muié veno o perigo, correu chorano; e ele apanhano um bom porrete, desandou com ança, mas porém, na cabeça do gatim, que deu aquele estouro que fedeu enxofre pru treis dias.

O dispois, foi ele, antonce, contá a muié o causo sucedido da gameleira da encrusiada.

Daquela data em diante foi ele vivê bem com sua muié, como dantes era.


(AMBRÓSIO, Manuel.
 Brasil interior)

Nota: Câmara Cascudo resumiu esta história nos Contos Tradicionais do Brasil e incluiu-a entre os contos do ciclo do demônio logrado. Aproveito e reproduzo a nota introdutória para a versão que recolhi em Serra do Ramalho, na Bahia, inserida entre os Contos e fábulas do Brasil. Há outro conto no mesmo compêndio, O gato preto, em que predominam elementos do ciclo maravilhoso ou de encantamento.

A nota abaixo refere-se ao conto O gato preto e a mulher maltratada.

O conto O gato preto e a mulher maltratada figura entre os religiosos por causa do episódio da intervenção demoníaca que provoca desavenças entre um casal. Câmara Cascudo reproduziu A audiência do capeta, colhida pelo prof. Manuel Ambrósio na zona do rio São Francisco entre Minas e Bahia. Lá, como na nossa história, a gameleira é o local escolhido para a sinistra reunião. Há uma superstição, ainda corrente no Nordeste, que sob esta árvore costumam aparecer assombrações. Talvez seja herança das sessões de entidades mitológicas — sob os carvalhos e outras árvores europeias — que o desaparecimento do paganismo transformou em demônios, no processo de acomodação das antigas crenças ao Cristianismo. No conto que coligimos, há até uma canção citando alguns dias da semana, com resquícios de velhas e desfiguradas crenças que sobrevivem do lado de cá do Atlântico.

quarta-feira, 22 de junho de 2011

A Mãe d'Água: um conto universal

O segredo de Melusina revelado, do Le Roman de Mélusine, 
de Guillebert de Mets, cerca de  1440

Reproduzo, agora, o conto A Mãe d’Água, do livro Lendas e fábulas do Brasil, de Ruth Guimarães. Trata-se, claramente, de uma versão literária de um conto recolhido por João da Silva Campos, da antologia Contos e fábulas populares da Bahia. Replico, ainda, a nota que fiz para o conto A Mãe d’Água do São Francisco, história que fecha o livro Contos e fábulas do Brasil e contempla igualmente a presente versão.

"Era uma vez um homem muito pobre que tinha uma boa plantação de melancias na beira do rio. Porém, quando estavam as pesadas frutas maduras, e ao calor se via o coração vermelhando, ele não podia colher uma só. Desapareciam de noite. Ele procurava os rastros do ladrão, nada encontrava na terra fofa. "Deve ser algum canoeiro, que vem pela água". Acreditando nisso, escondeu-se por trás de umas moitas e passou parte da noite espiando. Nada viu na primeira noite, nem na segunda. Na terceira, ouvindo um leve rumor para os lados do rio, foi devagarinho até lá, e viu uma moça linda como os amores, de compridos cabelos verdes, e olhos d’água profunda, colhendo as melancias todas. Foi atrás dela, bem devagarinho, pé por pé, e agarrou-a.

– Ah! Danada – gritou. – É você quem carrega as minhas melancias. Pois agora você vai para minha casa, para se casar comigo.

– Eu não – gritava a moça. – Eu não.

Mas o homem era forte e ela foi.

– Bem feito para mim, que roubava as frutas – disse ela.

– Você então se casa comigo? – perguntou o homem,
 embevecido com a sua beleza.l


– Caso. Mas tem uma coisa.

– O que?

- Nunca arrenegue de gente debaixo d’água.

– Pois sim. Nunca arrenegarei.

Foram para a cidade, num domingo, para se casar. Juntou gente para ver moça, tão linda, com seus cabelos verdes, e olhos de água verde, tão linda! Entrou na casa do pobre e com ela o milagre. E com ela a fartura. O melancial deu de arrebentar em melancias de arroba. O arrozal pendia de espigas enormes. Nas laranjeiras era preciso pôr escoras, pois vinham abaixo com as laranjas. E as vacas tinham bezerros formosos. As ovelhas, tanta lã que as maçarocas tiradas cada verão deram um fabuloso lucro. E era tudo assim. O homem fazia um negócio, ganhava um mundo de dinheiro. Comprou escravos, comprou terras, aumentou as plantações. Adquiriu mobílias, louças, jóias, roupas. O gado inumerável, dinheiro de não se acabar, escravaria, tudo que tinha se multiplicado. Tudo que não tinha lhe veio ter às mãos. Corria tudo muito bem, quando a moça começou a se desleixar. Andava pela casa com os vestidos esfrangalhados, emaranhada a bela cabeleira. Como não tomava conta de nada mais, os escravos também nada faziam. E era uma sujeira de dar nojo, pela casa toda. Os filhos de carinha suja choramingavam de fome. O marido pedia:

- Mulher, tome conta da casa. O que foi isso? Você era tão prestimosa…

A moça nem respondia. E a casa e ela e os filhos continuavam na mesma.

Um dia, o homem, arreliado, falou:

- Arre, também, que já estou perdendo a paciência. Arrenego de gente debaixo d’água.

A moça, que estava sentada, levantou-se mais que depressa e foi andando em direção ao rio, ao mesmo tempo que cantava:

"Zão, zão, zão, zão
Calunga,
Olha o munguelendô,
Calunga,
Minha gente toda
Calunga
Vamos embora,
Calunga"

O homem gritou:

- Não vai lá não, mulher.

E ela, sem olhar para trás, ia andando. Atrás dela foram saindo os filhos, os escravos, o pessoal jornaleiro das roças:

"Zão, zão, zão, zão
Calunga,
Olha o munguelendô,
Calunga,
Meus bichos todos
Calunga
Vamos embora,
Calunga"

Com vagaroso passo foram os rebanhos se dirigindo para o rio. Foram as vacas de leite, os bois de carros, as ovelhinhas brancas de neve, cabras e cavalos e burros, bestas de carga, até o cachorrinho, até o gato, até a tartaruguinha com que as crianças brincavam, e o papagaio. Alcançaram a Mãe d’Água, passaram adiante dela, foram andando para o rio e entrando n’água como se pisassem no terreno limpo, e desaparecendo aos poucos, sem alarido.

"Zão, zão, zão, zão
Calunga,
Olha o munguelendô,
Calunga,
Meus "terens" todos
Calunga
Vamos embora,
Calunga"

- Não vá embora não, minha mulher – o homem gritava.

Os móveis, as jóias, a louça, os baús, começaram a pular em direção ao rio. Até a casa se sacudiu e pulou. Cercados, telheiros, galinheiros, cercas de divisa, plantações, foi tudo engolido pelas águas. Dentro em pouco, a moça, cantando, mergulhou também. Quando o homem viu, estava sozinho, na margem tranqüila, com as suas roupas de pobre, e na terra somente havia uma plantaçãozinha reles de melancia.

Ele foi viver de novo pobremente, de vender as frutas, mas também nunca mais a Mãe d’Água buliu na sua roça".

Nota: Câmara Cascudo registrou em Natal (RN) O marido da Mãe d’Água, ouvido do pescador Antônio Alves, no qual o pacto, como no nosso conto, é rompido pela violação da promessa feita pelo cônjuge de nunca arrenegar da gente da água. Na Europa, a tradição do casamento sobrenatural alimenta a lenda de Melusina, viva durante muito tempo na tradição oral do oeste da França. Mas a popularização definitiva veio no século XV, quando Jean d’Arras deu forma literária à lenda, abaixo resumida:

  O conde Aymery de Poitiers, suserano de Basse-Marche, perseguia um monstruoso javali, auxiliado por seu sobrinho Raymondin, na floresta de Colombier. Os dois acabam se separando. Quando reencontra o tio, Raymondin percebe que ele está sendo atacado pelo javali. Atira a lança, matando a fera e o tio ao mesmo tempo. Desolado, sai sem destino até que, ao romper da aurora, se encontra em frente à Fonte das Fadas, onde uma donzela de grande beleza estava à sua espera. Ela lhe explica que, por ter sido um acidente, ele não pode ser acusado e nem tem culpa pela morte do tio. Em seguida, propõe um pacto, unindo as duas descendências. Ao temor do jovem, Melusina, a fada, teria respondido: “Eu sou da parte de Deus”. Vieram os filhos, marcados por sinais indicadores da sua dupla origem — um olho fora do lugar, uma orelha muito grande etc. De sábado a domingo, no entanto, a esposa ia em direção a uma torre. Seu marido, agora conde de Lusignan, prometera não segui-la, mas, tomado pela curiosidade, não cumpre a promessa. Na torre, ele a surpreende ao lado de uma moça nua que lhe trançava os cabelos. Percebe, apavorado, que o corpo da esposa terminava numa cauda cheia de escamas que se enroscava entre os nenúfares. Apavorado, o conde se benze e a mulher, por conta da violação, após soltar um grito de dor, lança-se da janela, agora transformada numa serpente alada. Mesmo não reaparecendo mais, tornar-se-á a protetora da casa de Lusignan, que cumpriria um destino glorioso na história francesa. Em diferentes épocas o mito será enfocado por Rabelais, Nerval, Peladan e André Breton.

  No conto O marido da Mãe d’Água há uma similaridade: no momento do encontro, ao ser instada se era uma alma penada, a Ondina responde: “ — Não sou alma penada, cristão! Sou a Mãe d’Água!” — repetindo a Melusina da tradição francesa, que dizia ser “da parte de Deus”. Câmara Cascudo cita dois episódios colhidos por João da Silva Campos, “com visível coloração negra”. Na verdade, são três, se incluirmos o conto A caça do mundé (LXII). Um caçador toma posse de uma roça abandonada e apanha no mundé uma moça que, em troca da liberdade, convida-o a viver em sua casa, impondo-lhe uma condição: nunca alegar que ela fora caçada num mundé. O homem passa a viver num castelo, mas, tornando-se soberbo, esquece-se da promessa e, depois de esperar mais do que o normal, pelo jantar, profere a frase fatal: “— Você bem mostra que foi caça no meu mundé...” — e a esposa, que só esperava que ele dissesse isso, desaparece, e com ela todo o esplendor. O homem reaparecerá no mesmo lugar do início da história, com sua espingarda e seus apetrechos de caça. Campbell, em O herói de mil faces, cita as mulheres selvagens, seres peludos que habitam cavernas nas montanhas e são muito temidos pelos camponeses russos. “Gostam de dançar ou fazer cócegas, até levar à morte as pessoas que caminham sozinhas pela floresta.” Ainda segundo Campbell, “muitas já se casaram com jovens camponeses, e, pelo que se diz, são excelentes esposas. Mas, como todas as noivas sobrenaturais, no momento em que o marido faz a mínima ofensa às suas noções extravagantes do comportamento conjugal adequado, elas desaparecem sem deixar vestígios”.
Yuki-Onna, a noiva sobrenatural dos contos folclóricos
 japoneses em gravura de Sawaki Suushi (1737)

  No Japão, Yuki-ona é, num dos contos do Kwaidan, de Lafcadio Hearn, a personificação do inverno naquele país. Hearn conta como os lenhadores Minokichi e Musaku, numa noite de tempestade, buscam abrigo numa cabana. O velho Musaku é morto por Yuki-onna, enquanto Minokichi é poupado, entre outros motivos, por ser ainda bem jovem. Não sem a advertência de que jamais deverá falar a ninguém sobre o encontro. Tempos depois, conhece uma jovem de pele muito alva, a quem desposa e de quem tem dez filhos. Uma noite, ao olhá-la costurando, ele relembra o dia fatídico em que conhecera Yuki-onna. Ela, então, revela sua verdadeira identidade, mas, por amor aos filhos, não cumpre a promessa. E, fundindo-se com o brilho da bruma branca, desaparece, não sendo mais vista pelo desventurado esposo.

  Nihil novi.

Por Marco Haurélio

sábado, 11 de junho de 2011

Presença dos Contos Tradicionais de Câmara Cascudo na Literatura de Cordel



Contos Tradicionais do Brasil em edição da Global Editora
Contar histórias tem sido, ao longo das eras, um assunto sério e também um amenoentretenimento. Ano após ano, histórias são inventadas, escritas, devoradas e esquecidas. Que acontece com elas? As poucas que sobrevivem e que, como sementes dispersas, o vento esparge durante gerações, engendram novos contos e proporcionam alimento espiritual a inúmeros povos. (...) Cada poeta acrescenta algo da substância de sua própria imaginação e as sementes, nutridas, revivem.(Heinrich Zimmer)

No Brasil, à margem da cultura livresca, dos moldes forçosamente importados, dos salões engalanados, vicejou opulenta, portentosa, espantosa literatura oral, fazendo, muitas vezes, pela boca de uma única pessoa se manifestarem civilizações há muito defuntas. Pode se argumentar que apenas um retalho, ou, menos ainda, um fiapo das antigas tradições chega até nós. Mas não é pouco. Na contística popular do Nordeste, por exemplo, é possível se escutar uma história que, em linhas gerais, é a mesma que os povos estabelecidos à margem do Nilo, no Egito, repetem há mais de 3.000 anos. As nossas orações aos santos, ligeiramente modificadas, em tempos de antanho, devem ter acalmado a fúria e comprado o obséquio de muitos deuses de incontáveis panteões. Dessa literatura oral a arte de um país que se pretende sério será sempre a maior tributária. A Literatura de Cordel é um dos galhos desta árvore. Se dela se desprender, perderá o sentido e a razão de existir.

A Literatura de Cordel no Brasil, a partir dos poetas pioneiros Leandro Gomes de Barros e Silvino Pirauá de Lima, sempre teve no conto popular um motivo essencial. As histórias que sobreviveram à peneira do tempo e chegaram até nós, refundidas em versos de sete sílabas, são o que há de mais característico no Cordel. Embora determinados pesquisadores reduzam o Cordel no Brasil à sua (importante) função de “jornal de povo”, é no manejo do material tradicional, oriundo ninguém sabe d’onde, trazido ninguém sabe por quem, que o poeta popular sempre estará mais à vontade. Foi dos contos populares, em suas múltiplas classificações, que nos chegaram os grandes clássicos da Literatura de Cordel.Os motivos dos romances e folhetos são os mais diversos: princesas encantadas, como Rosamunda ou a da Pedra Fina; heróis imponentes enfrentando todo tipo de perigo e malefício, a exemplo de João Corajoso, João Valente, João Sem-Medo, João Acaba-Mundo, João de Calais, João Soldado e, para variar, Juvenal e o príncipe Roldão. Estes são personagens saídos diretamente dos contos maravilhosos, também chamados contos de encantamento ou, por influência europeia, contos de fadas.

Mas o universo do Cordel é bem mais amplo: engloba ainda as histórias de animais, calcadas nas velhas fábulas, onde o riso brota espontâneo nos lábios de quem as lê ou as escuta. É a magia da literatura oral preservada no bom Cordel. Falando em riso, alguns personagens do Cordel, famosos por sua peraltice, têm origem também nos contos populares. Os exemplos mais notórios são os de João Grilo e Pedro Malazarte (ou Malasartes). São os amarelinhos, que trapaceiam os poderosos, sejam eles fazendeiros, sultões, ou o próprio Diabo. À lista dos sabichões devem ser acrescentados Cancão de Fogo, criação do genial Leandro Gomes de Barros, que estreou no Cordel antes de seus colegas Grilo e Malazarte, e também os poetas portugueses Camões e Bocage. Estes últimos, nos contos faceciosos, nas anedotas e no Cordel, possuem os mesmos atributos dos amarelinhos.

No Cordel, as histórias dramáticas quase sempre têm origem em livros de grande aceitação popular. Em alguns casos parecem fugir à estrutura do conto tradicional, embora tragam elementos originários deste, como a condenação de uma pessoa à morte, para se evitar o cumprimento de uma profecia. Outras vezes, tal condenação se dá por uma falsa acusação, geralmente imputada a uma esposa virtuosa por um cunhado devasso. A vítima é salva na última hora por um surto de piedade do carrasco e pelo acaso feliz de sempre ter um animalzinho por perto, que será morto em lugar do (a) condenado (a), fornecendo um pedaço de seu corpo (língua, fígado, coração) para comprovar a execução. O divulgadíssimo conto Branca de Neve e os Sete Anões (na versão dos Irmãos Grimm) e Maria de Oliveira, recolhido por Câmara Cascudo, trazem o mesmo motivo que, aliás, está na Bíblia, no livro de Gênesis, mais especificamente na história de José, quando seus invejosos irmãos ludibriam o pai, Jacó, fazendo-o crer na morte do filho, apresentando como prova suas vestes manchadas em sangue de carneiro.

É de Câmara Cascudo que passaremos a falar agora. Aliás, do universo da novelística popular a quem o devotado Mestre rio-grandense do norte dedicou alentados estudos, além de registrar algumas das mais belas versões, enfeixadas no volume Contos Tradicionais do Brasil. Todavia, seu trabalho ultrapassou o registro e a classificação dos contos. Pesquisador infatigável em sua honestidade intelectual, Câmara Cascudo estudou as raízes históricas e imaginou um possível trajeto que, nas veredas do espaço e do tempo, tenha possibilitado a esse tesouro imaterial chegar até nós e por aqui se aculturar. Quando possível, ele nos aponta referências na literatura clássica, detecta as pegadas dos heróis do conto maravilhoso em episódios da mitologia greco-romana e nos livros de indiscutível ancianidade da Índia dos Vedas e do Mahabharata.

Meu papel é estabelecer ligações entre os contos populares recolhidos e anotados por Câmara Cascudo e os folhetos e romances de Cordel diretamente inspirados nesta fonte ou que, mesmo com outra origem, estão vinculados ao trabalho do Mestre, que, melhor do que ninguém, conhecia a universalidade dos temas, tipos e motivos. Só é preciso atentar para um detalhe: às vezes acontece de o poeta popular, garimpeiro do inconsciente coletivo, se valer de mais de uma história para, ao final, apresentá-la como narrativa única. Exemplo: Proezas de João Grilo, de João Ferreira de Lima, é uma reunião de pequenas facécias, enfeixadas numa única história, resultado de uma compilação que tornará possível ao Grilo saltar do “sítio onde morava” para o Egito. Lá, terá de responder às perguntas do rei Bartolomeu, o sultão, dentre elas, o mesmo enigma que a Esfinge, um dos símbolos do Egito, propôs a Édipo:

Responda qual o animal
Que mostra mais rapidez
Que anda de quatro pés
De manhã por sua vez
Ao meio-dia com dois
À tardinha anda com três.

Tal qual o desafortunado herói grego, João Grilo responde que o animal em questão é o homem nas diferentes etapas de sua vida. Não por acaso, um dos contos da safra de Câmara Cascudo, Adivinha Adivinhão, compõe o mosaico de proezas do célebre amarelinho. O livro das Mil e Uma Noites traz exemplos muito próximos do motivo da inteligência posta à prova, enredo básico de muitos títulos de Cordel, sobressaindo-se no gênero a História da Donzela Teodora. Câmara Cascudo, aliás, nem ousava discutir a origem árabe da Donzela, no que estava coberto de razão. Há versões da mesma história nas Mil e Uma Noites, em que a Teodora tem o nome de Escrava Simpatia (La Docta Simpatia, em Cinco Livros do Povo).

Câmara Cascudo e Silvio Romero registraram, respectivamente, A Princesa Adivinhona e O Matuto João, em que o protagonista é um amarelo que decifra um enigma, obtendo como prêmio a mão da princesa que o formulara. Obviamente, o amarelo não é outro senão o nosso João Grilo, irmão gêmeo de Pedro Malazarte e, como foi comprovado, parente não muito distante da Donzela Teodora.Portanto, não mentem os que afirmam que o nosso João Grilo, apresentado ao mundo por Ariano Suassuna, como símbolo da malícia e sabedoria do nordestino espoliado, é um personagem das Arábias.Como o percurso da literatura oral é o mais improvável, até os célebres contos de Grimm e Perrault estão espalhados, na íntegra ou em partes, nas coletâneas de Câmara Cascudo e de outros folcloristas e na memória de muita gente ainda viva mas silenciada pela televisão.

Chapeuzinho Vermelho, O Pequeno Polegar, Joãozinho e Maria, entre outros, estão presentes no Contos Tradicionais do Brasil, sem falar de Bicho de Palha, versão tupiniquim de Pele de Asno, de Perrault. O conto Os Quatro Irmãos Habilidosos, de Grimm, mereceu do poeta popular Manoel D’Almeida Filho uma adaptação famosa, Os Quatro Sábios do Reino. Assim como O Fogo Rejuvescedor, também da coleta dos alemães, foi rebatizado em Cordel: Jesus e o Mestre dos Mestres. E, geralmente, as fontes do poeta popular não são os livros impressos mas o livro, o grande livro que é o inconsciente coletivo.

Algumas vezes se faz presente na história em Cordel um ou outro episódio onde se evidencia a matriz do conto popular. O ciclo que Câmara Cascudo denominou Natureza Denunciante fornece um motivo relevante para aquela que talvez seja a mais comovente história urdida por um bardo popular, O Cachorro dos Mortos, de Leandro Gomes de Barros. A cena é esta: a jovem Angelita, após ver seus irmãos serem mortos pelo brutal Valdivino, por ela repudiado, evoca as únicas testemunhas do bárbaro crime – ela morreria em seguida –, que eram o cachorro Calar, um “gameleiro” e uma flor. Reafirmando a sabedoria popular, o assassino retorna ao local do crime e é reconhecido pelo cachorro, despertando com sua algazarra a desconfiança das autoridades presentes a uma festa anual realizada no local onde os três desventurados irmãos receberam sepultura. Uma carteira encontrada por duas crianças num ninho de rato no “gameleiro” com uma confissão de próprio punho do assassino, é a prova cabal de seu crime e a realização do decreto de uma justiça invisível porém infalível, na qual ainda creem os nossos autênticos sertanejos.Na linha do exemplo famoso, reproduzido na sinopse acima, Câmara Cascudo nos conta de um homem curiosamente chamado Valdivino, assassinado por ladrões num ligar deserto. As testemunhas do crime são duas garças que passam voando e a quem Valdivino recorre no momento derradeiro. Numa ocasião festiva, um dos bandidos se trai justamente no momento em que passam duas garças voando e que ele, distraidamente, exclama: “Lá vão as testemunhas de Valdivino!...” Os circunstantes, amigos do desaparecido, descobrem os criminosos e, como no famoso romance de Leandro, a natureza denuncia mais um crime...

Enfim, são muitas as associações entre a Literatura de Cordel e os contos populares, quaisquer que sejam os gêneros ou os ciclos temáticos. Algumas vezes essas associações aparecem sutilmente costuradas num enredo mais denso, mas perfeitamente integradas à trama, como em O Cachorro dos Mortos.


Mestre Câmara Cascudo


Nota do blog: Parte deste texto integra a introdução da caixa temática 12 Contos de Cascudo em Cordel, editada pela Queima-Bucha.

Artigo postado originalmente no blog Cordel Atemporal.