Apresento, agora, uma interessante fusão de conto popular com romance. A informante é D. Maria Rosa Fróes, de quem recolhi muitas histórias. Algumas com a colaboração de Giselha Rosa Fróes, neta de D. Maria e minha ex-colega do curso de Letras em Caetité-Bahia.
O homem que foi para a guerra
No tempo dos cativos, vivia um homem muito rico, casado com uma mulher virtuosa, como igual não podia haver. O casal tinha uma única filha com idade de dois anos. Um dia, ele foi convocado para lutar numa guerra. A mulher implorou para ele não ir, pois sabia-se quando as guerras começavam, mas não quando acabavam. Não houve jeito. Antes de partir, ele pegou dois anéis de ouro de sete pedras cada um, e disse à esposa:
— Guarde bem esse anel — e pôs o seu no dedo.
Chegando ao local da guerra, ele foi trabalhar a favor do seu rei. Os anos se passaram. Todo dia, a mulher ia até o porto, sempre acompanhada dos criados e da filha, para ver os navios que partiam e chegavam de outros países. Sua esperança era que o marido estivesse num desses navios. Mas qual!
— Ah, seu pai não veio — dizia, decepcionada, mas esperançosa.
Quando a menina fez dezoito anos, a mãe convidou:
— Chegou outro navio. Vamos ver se seu pai está nele.
Quando os marinheiros desceram, ela viu um homem que a encarava, e resolveu perguntar a ele:
— Bom-dia! O senhor dá notícia de Dezoitozinho? — esse era o nome do homem.
— Dou. Ele foi para a guerra.
— Disso eu sei! E como ele vai passando por lá?
— A última vez que o vi, ele tinha dezoito sinais. O mais pequititinho era de pescoço cortado!
— Então morreu! — disse a mulher.
— Quando eu vi, não tinha morrido ainda! Onde a senhora mora?
— Aqui perto. Por quanto o senhor traz ele aqui?
— Eu não sei.
— Se o senhor o trouxer, terá prata e terá ouro que nem poderá contar.
— Eu não quero sua prata nem seu ouro, que tudo pertence a mim.
— Eu lhe dou um capital se trouxer ele aqui.
— Não quero sua prata, nem quero seu ouro. Quero seu corpinho jocoso para comigo dormir.
Ela, aí, ficou brava e ordenou:
— Vão, meus criados, com corda de piaçava, peguem dois cavalos brabos e amarrem esse atrevido! E ao redor de minha casa rodem com ele assim.
— Afastem pra lá, criados,
que tudo pertence a mim.
Senhora, se não se lembra
quando daqui eu saí,
dos anéis de sete pedras
que eu contigo parti?
Ela, então, perguntou:
— Se tu eras meu marido,
por que me fizeste assim?
— Fiz para experimentar
se tu eras firme a mim.
Apanha teu anel lá,
que o meu está aqui.
A mulher reconheceu o marido e ele abraçou a filha que deixara ainda criança. E os três foram viver felizes.
In: Contos e fábulas do Brasil, págs. 189-190.
Maria Rosa Fróes, Brumado, Bahia |
Nota: Ecos da Odisseia permeiam os versos finais de Dona Infanta (também conhecido como Bela Infanta), romance velho que aparece neste florilégio sob o título O homem que foi para a guerra, em versão prosificada. É vasta a bibliografia portuguesa documentada por Câmara Cascudo em suas anotações aos Cantos populares do Brasil, de Silvio Romero. Almeida Garret, que coligiu o romance, atribui a sua origem às guerras das Cruzadas, por conta das expressões “terra sagrada”, “na ponta de sua lança/ a cruz de Cristo levava” etc.
As senhas ardilosas do marido, testando a fidelidade da esposa, no entanto, parecem remeter mesmo aos tempos homéricos, e demonstram cabalmente tratarem-se os personagens de avatares de Ulisses e Penélope.
Abaixo o romance recolhido por Silvio Romero, no séc. XIX:
Estava Dona Infanta
No jardim a passear;
Com o pente douro na mão
Seu cabelo penteava;
Lançava os olhos no mar,
Nele vinha uma armada.
Capitão que nela vinha
Muito bem a governava.
"O amor que Deus me deu,
Não virá na vossa armada?
—Não o vi, nem o conheço,
Nem a sina que levava.
"Ia num cavalo douro
Com sua espada dourada,
Na ponta de sua lança
Um Cristo douro levava.
—Por sinais que vós me destes
Lá ficou morto na guerra,
Debaixo duma oliveira
Sete facadas lhe dera.
"Quando fordes e vierdes
Chamai-me triste viúva,
Qu'eu aqui me considero
A mais infeliz sem ventura.
—Quanto me dareis, senhora,
Si vos eu trouxe-lo aqui?
"O meu ouro e minha prata,
Que não tem conta nem fim.
—Eu não quero a tua prata,
Que me não pertence a mim;
Sou soldado, sirvo ao rei,
E não posso estar aqui.
Quanto me dareis, senhora,
Si vo-lo trouxer aqui?
"As telhas de meu telhado
Que são de ouro e marfim.
—Eu não quero as tuas telhas,
Que me não pertence a mim;
Sou soldado, sirvo ao rei,
E não posso estar aqui.
Quanto me dareis, senhora,
Si vo-lo trouxer aqui?
"Três filhas que Deus me deu
Todas te darei a ti,
Uma para te calçar,
Outra para te vestir,
A mais linda delas todas
Para contigo casar.
Eu não quero tuas filhas,
Que me não pertence a mim;
Sou soldado, sirvo o rei,
E não posso estar aqui.
Quanto me dareis, senhora,
Si vos eu trouxe-lo aqui ?
"Nada tenho que vos dar
E vós nada que pedir.
—:Muito tendes que me dar,
Eu muito que vos pedir:
Teu corpinho delicado
Para comigo dormir.
"Cavaleiro que tal pede
Merece fazer-se assim:
No rabo de meu cavalo
Puxa-lo no meu jardim!
Vinde, todos meus criados,
Vinde fazer isto assim.
—Eu não temo os teus criados,
Teus criados são de mim.
"Si tu eras meu marido,
Porque zombavas de mim?
—Para ver a lealdade
Que você me tinha a mim.
No jardim a passear;
Com o pente douro na mão
Seu cabelo penteava;
Lançava os olhos no mar,
Nele vinha uma armada.
Capitão que nela vinha
Muito bem a governava.
"O amor que Deus me deu,
Não virá na vossa armada?
—Não o vi, nem o conheço,
Nem a sina que levava.
"Ia num cavalo douro
Com sua espada dourada,
Na ponta de sua lança
Um Cristo douro levava.
—Por sinais que vós me destes
Lá ficou morto na guerra,
Debaixo duma oliveira
Sete facadas lhe dera.
"Quando fordes e vierdes
Chamai-me triste viúva,
Qu'eu aqui me considero
A mais infeliz sem ventura.
—Quanto me dareis, senhora,
Si vos eu trouxe-lo aqui?
"O meu ouro e minha prata,
Que não tem conta nem fim.
—Eu não quero a tua prata,
Que me não pertence a mim;
Sou soldado, sirvo ao rei,
E não posso estar aqui.
Quanto me dareis, senhora,
Si vo-lo trouxer aqui?
"As telhas de meu telhado
Que são de ouro e marfim.
—Eu não quero as tuas telhas,
Que me não pertence a mim;
Sou soldado, sirvo ao rei,
E não posso estar aqui.
Quanto me dareis, senhora,
Si vo-lo trouxer aqui?
"Três filhas que Deus me deu
Todas te darei a ti,
Uma para te calçar,
Outra para te vestir,
A mais linda delas todas
Para contigo casar.
Eu não quero tuas filhas,
Que me não pertence a mim;
Sou soldado, sirvo o rei,
E não posso estar aqui.
Quanto me dareis, senhora,
Si vos eu trouxe-lo aqui ?
"Nada tenho que vos dar
E vós nada que pedir.
—:Muito tendes que me dar,
Eu muito que vos pedir:
Teu corpinho delicado
Para comigo dormir.
"Cavaleiro que tal pede
Merece fazer-se assim:
No rabo de meu cavalo
Puxa-lo no meu jardim!
Vinde, todos meus criados,
Vinde fazer isto assim.
—Eu não temo os teus criados,
Teus criados são de mim.
"Si tu eras meu marido,
Porque zombavas de mim?
—Para ver a lealdade
Que você me tinha a mim.
O livro Contos e fábulas do Brasil será lançado dia 20 de agosto.
Marco ficou uma maravilha. E a contar também com simpatia da D Maria Rosa.
ResponderExcluirParabéns!
Pedro, D. Maria é um patrimônio da cultura brasileira. Sua sabença, certamente, comoveria Câmara Cascudo.
ResponderExcluirÓ virtuosa mulher... Mas, por que terras e aventuras andou seu bravo marido?
ResponderExcluirNão sei, Grandioso Fá,
ResponderExcluirPor onde ele andou na guerra,
Só sei que, igual a Ulisses,
Ele volta à sua terra!
Marco, tomei-lhe este conto empretado e posttei no Pesponteando, como havia solicitado.
ResponderExcluirUma delicia os contos.
Parabéns por mais este trabalho.
bjs
Paula, fique à vontade. A casa é sua, é nossa.
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