quarta-feira, 1 de junho de 2011

O preguiçoso (conto jocoso)


Imagem de abertura da seção dedicada aos contos jocosos (por Severino Ramos)
                

Um homem preguiçoso vivia com a mulher muito trabalhadeira. A casa deles era de vara, e a mulher, cansada de passar frio, teve que encher as paredes sozinha: carregou todo o barro e fez o serviço, enquanto o marido permanecia o dia todo deitado no chão, palitando os dentes e pitando seu cigarro de palha.
Tudo o que a mulher mandava fazer, ele vinha com uma desculpa para não realizar o serviço. Um dia, ela disse:
— Marido, vai ao mato caçar uma paca gorda pra nós fazer um cozido gostoso.
E o preguiçoso vinha com a desculpa:
— Ô minha veia, você quer meu mal?! Pra eu armar uma arapuca, tenho que pegar no machado, ele bate no meu pé e, aí, é desgraceira na certa! No mato tem onça. Se a onça me pega, me come. É melhor ficar por aqui.
A mulher se azoretava e dizia:
— Então, marido, levanta daí e vai botar um roçado, que a chuva já tá pra chegar!
— Mulher, a chuva que Deus dá no roçado dá no mato também. Não precisa de tanta arribação!
E a mulher, que já não aguentava mais, dizia:

Miserável, marido, como você
era melhor não ter.
Cachorro há de te latir
e cobra há de lhe morder.
Tanta preguiça,
só falta ser enterrado vivo,
e é isso que eu vou fazer!

Ele achou boa a ideia, já que não precisaria mais se levantar nem para fazer as necessidades. Então a mulher chamou uns homens para sepultar o preguiçoso. Puseram-no na rede e tocaram o cortejo. Na estrada, um compadre dele vinha montado a cavalo e, vendo a rede, perguntou:
— Meu compadre morreu e ninguém me avisou?
— Morreu não, compadre, mas prefere ser enterrado vivo a ter que levantar uma palha do chão. Esse homem não trabalha nem pro seu sustento, e eu já não aguento mais!
O compadre, então, ofertou:
— Para não enterrar meu compadre, eu ofereço um saco de feijão, outro de arroz e um cacho de banana.
O preguiçoso, ouvindo a proposta, espichou o pescoço para fora da rede e perguntou:
— Ô compadre, me responda uma coisa: esse feijão é debulhado?
— Não.
— E esse arroz e esse cacho de banana vêm com casca ou sem casca?
— Com casca!
Então, para surpresa de todos, o preguiçoso completou:
— Prossiga o enterro!
Maria Magalhães Borges,
Serra do Ramalho, Bahia.


Nota

A preguiça misturada à estupidez é tema, ainda, do último exemplar da seção (de Contos jocosos), O preguiçoso (56), no qual a indolência chega ao limite extremo. O professor Jackson da Silva Lima recolheu cinco versões do romance do preguiçoso, em Sergipe e Alagoas, nas quais constam o episódio da exortação da mulher e os argumentos de que se vale o marido para não levantar-se da cama — ou da rede. Como exemplo, reproduzo um trecho da versão recolhida em Buquim (SE), cantada por D. Josefa de Jesus:

— Marido, se alevante,
Vá matar uma sariema,
Nós come a carne toda,
Faz a bassoura das penas.
— Quem me dera isso agora,
Não é minha velha,
No braço de uma morena,
Adeus, saudade...

“O assunto-chave desse romance é bastante explorado em histórias de trancoso e contos populares, encontradiços em todas as latitudes. A figura interessante do preguiçoso tem despertado a curiosidade dos humildes, envolvendo-a em situações chistosas, sem no entanto torná-la desprezível.”( In: LIMA, Jackson da Silva. O folclore de Sergipe, I: romanceiro, p. 422.)

A nossa versão, narrada por Maria Magalhães Borges, é um híbrido do conto com o romance. Lindolfo Gomes recolheu em Minas Gerais duas versões e as incluiu no que chamou de ciclo do preguiçoso. Na primeira, João Preguiça, o personagem-título é um parvo que jamais digna-se de levantar-se da rede. Fica tão debilitado que é dado como morto. A caminho do cemitério, descobrem que o preguiçoso ainda estava vivo. Um dos irmãos, condoído, oferece um prato de arroz, ao que uma voz enfraquecida responde perguntando: “—... é com casca ou sem casca”. A resposta negativa precipita o desfecho cômico, com o pedido do parvo: “— Toca pro cemitério!”. Na história seguinte, o preguiçoso é um avarento, que, mesmo sendo rico, vive numa choupana, onde é encontrado pelos sobrinhos que o julgam morto. Um curandeiro ministra-lhe um unguento que o traz de volta à vida. Ao ver este pedir uma soma que julga exorbitante como pagamento, o avarento não tem dúvidas e pede para que o enterro prossiga. A história figura também, sob o título Pedro Preguiça, nos Contos tradicionais do Algarve, de Ataíde Oliveira, e na versão literária reelaborada por Alphonse Daudet, O figo e o preguiçoso. Encontramo-la também entre os Contos populares da Romênia, de Ion Creanga. A História dum preguiçoso repete os mesmos passos de nosso conto. Os habitantes duma aldeia, com medo que o preguiçoso do título contaminasse os demais com sua indolência, designam dois campônios para levá-lo à forca. A caminho do patíbulo, uma senhora, compadecida com a sorte do moleirão, se oferece para salvá-lo, levando-o a um solar, onde terá por alimento crostas de pão. Quando descobre precisará passar o molho no pão, o madraço decide-se pela morte na forca!

Nota final (por Paulo Correia)
Classificação: ATU 1951 (O arroz está cozido?)
Versões: 3 portuguesas; 3 brasileiras
Nota: Conto raro que nas Américas aparece sobretudo na zona do Caribe: Louisiana, México, República Dominicana. O seu propósito é criticar o homem como mandrião, característica normalmente atribuída às mulheres na tradição oral.

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