Gravura de Severino Ramos |
No tempo em que todo país era governado por um rei, viveu um velho muito rico que tinha um único filho. E esse rapaz, de uma hora para outra, achou de sair pelo mundo, para conhecer novas terras. O pai tentou fazê-lo desistir da ideia, mas... qual! Ele estava resolvido! O velho, então, pegou duas bulocas de dinheiro, mandou preparar um burro, entregou tudo ao fi lho e se despediu dele, abençoando-o. O moço colocou viagem. Andou, andou, sempre parando no local onde havia uma igreja velha para reformá-la.
Depois de muito andar, avistou uma capela velha, caindo aos pedaços. Pagou uns homens para reformá-la. Eles fi zeram conforme o combinado, mas deixaram de pintar uma imagem do Diabo num quadro. Ele fez questão de que os homens cuidassem de tudo e a imagem foi restaurada. O rapaz, satisfeito, prosseguiu a viagem, indo parar num reino distante. Lá, pediu arrancho a uma velha. Ela o recebeu, pois viu que ele era endinheirado. O rapaz, então, perguntou-lhe:
— Minha velha, nesse reino eu vi uma igreja precisando de reparo. Será que eu posso pagar uma reforma?
— Não, senhor! Essa igreja é do rei, e tem que pedir autorização — foi o que a velha disse, e pensou: “Ele deve ter muito dinheiro mesmo”.
Assim que se viu sozinha, ela achou de curiar as coisas do andarilho, e viu as bulocas de dinheiro. Aí cresceu o olho, foi até o rei e delatou o rapaz como ladrão. A lei do lugar mandava para a forca quem fosse acusado de roubo. O rei mandou prender o estrangeiro e, com oito dias, ele subiria à forca.
No dia em que o moço ia ser executado, ajuntou-se muita gente em frente ao palácio. A velha estava assistindo à cena, quando veio uma coisa estranha, agarrou-a e desapareceu com ela. O povo ficou apavorado e o rei, mais ainda. Todos perceberam, naquela hora, que o moço era inocente, e o rei mandou que o soltassem imediatamente.
Ele pôs viagem novamente. A caminho de casa, avistou um braço de mar, impossível de ser atravessado a nado. Além do mais, o mar era cheio de feras. De repente, chegou um freguês, não se sabe de onde, e se ofereceu para atravessá-lo:
— Suba em minhas costas, que eu lhe atravesso.
Fazer o quê?! Ele precisava chegar ao outro lado, e subiu nas costas do estranho, que começou a nadar com muita rapidez. Chegando ao meio do mar, no lugar mais perigoso, o freguês perguntou-lhe:
— Você acredita mesmo em quem: em Deus ou no Diabo?
O rapaz, de pronto, respondeu:
— Nos dois!
Aí o estranho continuou nadando e o deixou, são e salvo, do outro lado. O moço lembrou-se da igreja que mandara reformar e compreendeu quem o havia ajudado.
Guilherme Pereira da Silva narra o conto O Diabo e o andarilho |
Nota: O Diabo como auxiliar mágico, ou como protetor, é um tema aparentemente incomum na contística popular. Tradicionalmente católica, a população interiorana repele o tinhoso, evitando invocá-lo involuntariamente, pronunciando-lhe o nome. Daí a opção por um sinônimo ou apelido. Nome numen. Entretanto, nalgumas histórias, a exemplo de O Diabo e o andarilho deste volume, o “adversário” aparece como benfeitor, contrariando a crença estabelecida. Diz o adagiário: Deus é bom, mas o Diabo não é ruim; o Diabo não é tão feio como se pinta. Sílvio Romero apresenta-nos dois contos do Helpful Devil: A proteção do diabo (24) e Os três irmãos (33). No primeiro, mais próximo do nosso, deparamos o tema da profecia evitada: o príncipe que trouxe a sorte de morrer enforcado (este é, precisamente, o título de um antigo romance de cordel de autoria de Joaquim Luiz Sobrinho). No segundo, o Diabo recompensa um fi lho amaldiçoado pelo pai, livrando-o da forca à qual foi condenado após uma falsa acusação. No nosso exemplar, há elementos do conto nº 24 de Romero e um acréscimo que revela a identidade do protetor mágico do andarilho. A versão dos Grimm é Os três empregados (Die drei Handwerksburschen), com os protagonistas unidos por um pacto de riqueza no qual suas almas não foram negociadas com o Diabo. Creio ser este Diabo benfeitor uma sobrevivência de antigas deidades ora benfazejas, ora malévolas, pondo-se a serviço dos que lhes prestavam cultos. No mesmo rol estão os gênios do folclore dos povos árabes (os djins), conhecidos em todo o mundo graças ao livro das Mil e uma noites.
Nota de Paulo Correia:
Classificação: AT 506** (O Diabo agradecido)
Versões: 1 portuguesa; 5 brasileiras
Ecotipo da Lituânia (segundo Aarne-Thompson 1961). Este conto raro baseia-se no motivo N 848.1 (O herói restaura a imagem de um santo e mais tarde é ajudado por este). A presente versão não surge muito contaminada, mas as outras versões brasileiras parecem participar de outros tipos como o anterior AT 506* (A profecia evitada).
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ResponderExcluirÉ muito comum nos contos maravilhosos a participação de seres (muitas vezes, animais) que são ajudados desinteressadamente (e este aspeto é muito importante para compreender a moral do conto, acho eu) pelo herói, seres que, depois, mais à frente na história, retribuem o bem que lhes foi feito, salvando esse herói de um grave perigo. O mesmo se passa nesta interessantíssima versão baiana. Com um acrescento que a torna mais interessante ainda: quando o ajudante ajuda o herói não se sabe quem aquele é, e só mais tarde se descobre a sua identidade (apresentada através de um pequeno golpe de teatro), o que torna a moral da história ainda mais eficaz: o Diabo não é tão mau como o pintam e ajuda quem o ajuda :-) Esse pequeno golpe de teatro (surpresa quando se entende quem era, afinal, o ajudante do herói) aparece também no conto do "Morto Agradecido", ou pelo menos em certas versões dele, em que o herói (e, portanto, o ouvinte do conto) não reconhece quem o ajudou e só o entende porque, no fim, o morto lhe diz algo do género: "Não te lembras de ter mandado enterrar um morto cujo cadáver estava abandonado à beira da estrada e com quem ninguém se preocupava? Pois esse morto sou eu, que agora, ao ajudar-te, te paguei a ajuda que então me deste."
ResponderExcluirAo provérbio que o Marco Haurélio muito apropriadamente lembrou ("O Diabo não é tão mau como o pintam"), poderíamos talvez acrescentar outro provérbio cujo ensinamento também me parece ser partilhado por esta versão baiana: "Faz/faça o bem sem olhar a quem".
Caro, JJ, o seu comentário enriqueceu sobremaneira esta postagem, especialmente por trazer informações sobre o "morto agradecido", muito difundido por estas paragens graças às versões em cordel da História de João de Calais.
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