quinta-feira, 21 de julho de 2011

Toco Preto e Melancia, um conto novelesco

Gravura de Severino Ramos

   Era uma vez um homem que vivia com a mulher e as filhas. Uma de suas filhas se apaixonou por um rapaz que morava nas redondezas. Pelo fato de o moço ser tropeiro, o pai dela não permitia o casamento, alegando que ele viajava muito e não parava em casa. Ela respondeu que ele viajava para ganhar a vida, mas que se tratava de um bom rapaz:
   — Quem vai casar com ele sou eu, e não o senhor, meu pai!
 Como não adiantava reclamar, a moça e o rapaz começaram a namorar escondido. Um dia, combinaram um encontro na roça de mandioca do pai dela, onde tinha um toco preto no lugar de uma árvore queimada. Ele disse:
   — Nós vamos nos encontrar toda semana no dia tal.
 E assim foi feito: eles se encontravam para conversar sem o pai da moça saber. De noite, ela dizia que ia à casa da vizinha e, desviando do caminho, ia ao encontro dele. O namorado, então, fez essa proposta:
 — Vamos nos tratar com outros nomes: você me chama de Toco Preto e eu a chamo de Melancia. Assim ninguém vai desconfiar. O casal continuava a se encontrar nos dias marcados. Mas, depois do último encontro, ele ficou um ano sem vir, viajando com sua tropa. Nesse espaço de tempo, apareceu um moço chamado Antônio de Zé Moreira que queria casar com Melancia. A moça disse aos pais:
  — Ele é muito bom, mas não para casar comigo. — Mas, depois de pensar que já fazia um ano sem ver o seu amado, resolveu aceitar o casório. O casamento foi marcado no mesmo dia em que se davam os encontros entre Toco Preto e Melancia. Quando Toco Preto retornou da viagem, ficou sabendo do casamento de sua amada. Então ele disse:
  — Não tem nada, não. — E chamou um empregado, dizendo:
 — Vai na casa da moça que está se casando e faça tudo o que eu mandar. — E passou todas as informações para o empregado.
  A festa rolava solta com os noivos no salão. Naquilo, chegou um homem e começou a jogar uns versos que diziam:

Lá na serra da Taquara
Desceu hoje um cachorrinho
Tomando sol pela testa
E vento pelos ouvidos.
Lá no toco preto, ingrata,
Eu deixei o seu gemido.

  E o homem continuou dançando e cantando:
  — Samba pra trás, rapaziada! Samba pra trás, rapaziada! — enquanto jogava os versos. Mas Melancia só ouvia, sem desconfiar do que se tratava:

 Oh! que moça tão bonita
Tão custosa a desconfiar.
Minhas avistas, Melancia.
Toco Preto está no lugar!

  Bastou ele cantar estes versos para ela entender tudo. Pediu licença à madrinha, dizendo que ia se deitar um pouquinho para descansar. Em casa, chamou uma empregada que lavava a louça, e disse:
  — Ana, pegue uma lata, coloque uma galinha cheia e um lombo com farofa, feche-a e ponha numa sacola e traga para mim, rápido!
  As outras empregadas pensaram que era presente para alguém na festa. Com toda cautela, Melancia saiu pelos fundos com a empregada Ana. Na estrada para a roça, tinha uma porteira. Ana segurou-lhe o vestido para não se sujar e as duas seguiram viagem. Quando chegaram na roça de mandioca, no toco onde se davam os encontros, o rapaz que jogou os versos já as esperava. Toco Preto ordenou, então, ao empregado que pegasse os cavalos, que estavam arreados. Montaram rapidamente e tocaram viagem para a terra de Toco Preto.Na festa, quando deram por falta da noiva, a mãe perguntou à madrinha:
   — Cadê Ana?
   — Está na cozinha lavando louça!
   — E minha fi lha?
   — Ah, ela foi se deitar um pouco porque estava cansada, mas já faz um bocadinho.
  A mãe resolveu, então, ir ao quarto procurar a fi lha, mas não a encontrou. Na cozinha, soube que ela e     Ana saíram com uma sacola, e que já fazia um tempinho.
  Desta forma, Melancia saiu para encontrar-se com seu Toco Preto e deixou noivo, festa e todos para trás.

Capa do romance em cordel, Coco verde e Melancia,
publicado pela editora Luzeiro.
 

Nota: Toco Preto e Melancia, narrado por D. Maria Rosa Fróes, de Brumado, Bahia, pertence à categoria dos contos que Théo Brandão assegurava ser de indiscutível origem brasileira. Além das versões de Sílvio Romero, Melancia e Coco Mole, e de Simões Lopes Neto, Melancia-Coco Verde, o eminente folclorista alagoano analisa dois romances de cordel (Coco Verde e Melancia ou Armando e Rosa, na versão original de José Camelo de Melo Resende e na recriação de Manoel Pereira Sobrinho) e exemplares divulgados em coletâneas mais recentes, como a História de um moço pobre, de Aluísio de Almeida. Após discriminar os motivos recorrentes nas muitas variantes a que teve acesso, o Dr. Théo sentencia: “Eis aí, cremos, até prova e documentação em contrário, um conto brasileiro, portanto. Um conto brasileiro na sua origem, nos seus motivos e tipos, no reflexo que nele se encontra do ambiente social, ecológico, folclórico; talvez — quem sabe — a única estória realmente brasileira que se possa demonstrar em nosso folclore, esse conto de Coco Verde, Melancia...”
 Embora dispusesse de farta documentação, reproduzida no ensaio Seis contos populares do Brasil, Théo Brandão incide em equívoco quando, para ratificar a origem brasileira deste conto novelesco, aponta os motivos e tipos recorrentes. Sua análise estrutural do conto, muito bem fundamentada e apoiada na Morfologia de Propp, não lhe permitiu enxergar similaridades entre Coco Verde e Melancia e o romance da Bela Infanta, sem o motivo inicial do namoro proibido. No romance, há a partida forçada do marido em decorrência de uma guerra, como na Odisseia, e o retorno deste, tempos depois, quando se dá a conhecer à esposa por meio de senhas. O personagem intermediário — no conto nº 43 do livro Contos e Fábulas do Brasil um empregado de Toco Preto — parece ser, na refabulação nacional, uma encarnação do herói disfarçado, voltando do exílio, a exemplo de Ulisses, coberto de andrajos e sofrendo insultos de toda ordem dos pretendentes à mão de Penélope. Em Ingrata e Gemidodos Contos folclóricos brasileiros, a heroína, para evitar o casamento imposto pelo pai, finge-se de muda (a falsa morta, do ATU 885). Evidente atualização do motivo da mortalha de Laerte.
Paulo Correia vislumbra uma origem chinesa e indica sua presença no Decameron, de Boccaccio (X 4), fornecendo a prova em contrário exigida por Théo Brandão.

(Marco Haurélio)

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