Dona Helena
Era uma moça que ia todos os dias à
fonte buscar água. Um belo dia, entrando assim nos matos da beira da fonte, viu
um leão deitado. Correu mais que depressa, com medo, e veio-se embora para casa
com a sua boca calada. Quando foi no outro dia, tornou a ver o leão no mesmo
lugar e tornou a correr para casa, depois de haver enchido o pote às pressas. E
assim se passaram muitos dias, vendo a moça o leão deitado sempre no mesmo
sítio. Afinal, compreendeu ela que, se o animal estava deitado só naquele
lugar, era porque se achava doente. Um dia, disse:
— Coitado, ele dever estar morto de
fome.
Em casa, na hora do jantar, tirou às
escondidas um bocado de comida de seu prato e guardou-o. Quando, no dia
seguinte, saiu para a fonte, enrolou a comida numa folha de bananeira e botou
no seio. Chegando à fonte, arriou o pote no chão e foi aonde estava o leão,
atirando de longe o bocado de comida junto dele. Assim continuou a fazer, até
que foi se acostumando com o animal e perdendo o medo dele. Para encurtar a
história, com pouco estavam os dois bem amigos um do outro. Ela chamava-o Dom
Leão; e ele, Dona Helena.
Disse o leão a Dona Helena que,
quando lhe fosse levar comida, não precisava mais ir no mato; chamasse-o da
fonte, que ele iria. Dona Helena chamava-o, cantando:
— Dom Leão, caião, caião,
Dom Leão, caião, caião.
Procura o teu amor,
Procura o teu amor.
Respondia-lhe o leão:
— Dona Helena de Canguruçu,
Çuçu,
çu-uçu,
çuçu.
Depois
que a moça se habituara a levar-lhe comida, não quis mais ir com pessoa alguma
à fonte. Assim que amanhecia o dia, apanhava o pote muito depressa e corria para
a fonte, demorando-se lá um tempo enorme. Até que, de uma feita, sua irmã, que
se chamava Dona Aninha, disse:
—
Gente, o que tem Dona Helena, que não quer mais ir na fonte com ninguém? De
primeiro, ela me chamava sempre; e, agora, só quer ir sozinha e se demora tanto
tempo lá?!
Quando
Dona Helena saiu para a fonte, Dona Aninha foi atrás dela, na moca. Chegando
perto da fonte, entrou no mato e ficou espiando o que a irmã fazia. Viu Dona
Helena arriar o pote no chão e cantar como era de costume, respondendo-lhe o
bicho de longe. Daí a pouco é quando vem aquele leão que era um mundo, de
grande. Dona Helena, muito alegre, satisfeita, sorrindo, deu-lhe a comida que
trazia escondida no seio. Acabando o leão de comer, ela alisou-lhe a juba,
tirou-lhe as folhas secas que estavam pegadas no pelo, catou-o todo. Isso levou
muito tempo. Quando o leão foi embora, Dona Helena encheu o pote e voltou para
casa.
—
“Ah! — disse Dona Aninha consigo —, é por isto que tu só queres vir sozinha
para a fonte? Eu te dou a resposta”.
Quando
foi no outro dia, antes de Dona Helena sair, ela apanhou um facão bem amolado e
correu para a fonte. Chegando lá, cantou como tinha ouvido a irmã cantar. O
leão respondeu e veio se aproximando. Assim que Dona Aninha foi vendo o leão,
foi voando em cima dele e dando-lhe uma cutilada no pescoço, que o fez cair. Aí
a malvada da moça amiudou os golpes, espicaçando o pobre bicho todo. Cortou-o,
cortou-o, até ficar com os braços cansados. Depois correu para casa, caladinha.
Dona Helena, coitada, ainda estava bem desencalmada, preparando-se para levar a
comida de Dom Leão.
O
bicho saiu arrastando-se, a muito custo, dando consigo, todo ensaguentado e
retalhado, no lugar onde Dona Helena o tinha visto pela primeira vez. Quando
Dona Helena chegou à fonte, cantou, chamando-o. Nada de Dom Leão responder.
Tornou a cantar. Nada. Pela terceira vez cantou. Nada. Ela aí disse:
—
Ai, meu Deus, que Dom Leão é morto...
E
começou a chorar, em termo de se acabar. Ele, coitado, a muito custo, com pena
de ouvi-la estar cantando e, depois, chorando daquele jeito, respondeu com a
voz muito fraca. Então Dona Helena correu, embarafustando, abraçou-se a ele,
chorando para a vida não ter. Disse-lhe Dom Leão:
—
Não chore, não. Deixe estar. Não chore, não, que eu fico bom. Foi sua irmã quem
me fez isto. Chegou na fonte e cantou. Eu pensei que era você e fui. Assim que
ela me avistou, foi correndo em cima de mim e me metendo o facão, que quase me
mata. Mas deixe estar. Vá em casa, e me traga uma vasilha bem grande e uma porção
de cinza.
Assim
mesmo ela fez. Chegou em casa, disfarçou, apanhou um tacho bem grande, encheu-o
de cinza e correu aonde estava Dom Leão, que, ajudado pela moça, entrou para a
vasilha, mandando que ela o cobrisse todo de cinza. Diariamente Dona Helena ia
ver se ele já estava melhor e levar-lhe comida. Quando Dom Leão ficou bom, que
pôde se levantar, disse-lhe:
—
Amanhã não carece mais você vir aqui. Chegando na fonte, me chame que eu vou lá
tomar a comida.
Isto
mesmo aconteceu. Acabando de comer, conversou muito com a moça e, por fim,
disse:
—
Agora, de hoje em diante, não venha mais me trazer comida, porque você não me
encontrará. Vá para casa se aprontar para casar comigo, que eu também vou me
preparar. Hoje acaba o meu encanto.
Recomendou
muito que toda a comida do dia do casamento fosse feita só e só pelas mãos
dela; que não queria que outra qualquer pessoa, fosse lá quem fosse, levasse ao
menos um prato. E marcou o dia do casamento.
Dona
Helena foi para casa em termo de morrer de contente e começou a tratar do
enxoval, sem ninguém perceber. Na véspera do dia marcado por Dom Leão para o
casamento, estava Dona Helena na cozinha, preparando aquele horror de comida, e
a gente de casa só perguntando para que era semelhante despropósito. Dona Helena
nem como coisa que estavam falando com ela. Foi quando bateu na porta aquele
príncipe bonito que fazia prazer. Dona Aninha entrou para a camarinha,
preparou-se toda, enfeitou-se, encheu-se de cheiros e correu muito lampeira
para a sala. Então o príncipe disse:
—
Eu com a senhora não tenho negócio nenhum. Não foi a senhora que me deu tantas
cutiladas lá na fonte? Eu quero falar é com Dona Helena, pois com ela é que vou
me casar.
Ela
aí correu para dentro, estourando de vergonha e de inveja, porque a irmã ia se
casar com um príncipe tão formoso. Quando Dona Helena apareceu na sala, foi
toda alvoroçada, com cabelos desgrenhados, a cara, as mãos e a roupas sujas de
carvão, as mangas arregaçadas e descalça. Ela conheceu logo que era Dom Leão.
Então o príncipe pediu-a em casamento aos pais. E, como já estava tudo pronto,
logo no outro dia se casaram. Houve muitas festas, muitos comes e bebes, indo
Dona Helena morar com seu marido morar num palácio que era uma beleza, vivendo
eles dois mui felizes por largos anos.
Recolhido por João da Silva Campos e
publicado em Contos e fábulas populares
da Bahia
(1929).
Que delícia de conto. Eu estava procurando contos para compartilhar com as crianças da creche LBV. Obrigado pela postagem.
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