sexta-feira, 2 de março de 2018

Por que um grupo de estudos sobre o conto popular?

Avó e neto.Ilustração de Luciano Tasso. 

Em menino, no descambar do dia, minha grande diversão era ouvir, contadas por minha avó Luzia Josefina, as velhas histórias que se renovavam a cada audição. O mais incrível é que ela, à semelhança de outra Luzia, a Luzia Tereza da Paraíba, conservava em seu acervo imemorial os contos maravilhosos em maior grau. Lamentavelmente, não consigo relembrar todos, mas, graças a meu pai, Valdi, e a minha tia Isaulite (Lili), fixei boa parte nos livros Contos Folclóricos Brasileiros e Contos e Fábulas do Brasil. Mais tarde, o contato com a obra dos Irmãos Grimm gerou estranhamentos, perplexidade e, por último, instigou-me a buscar os pontos de aproximação. “Belisfronte”, por exemplo, que mais tarde foi vertido por mim para o cordel, era muito semelhante a Eros e Psiquê, o conto mítico de Apuleio, lido inicialmente não no “Asno de Ouro”, mas na famosa Antologia de Thomas Bulfinch, aqui batizada como O Livro de Ouro da Mitologia.

O fio de Ariadne, no entanto, só me veio mais tarde, com a leitura dos Contos Tradicionais do Brasil, de Luís da Câmara Cascudo, livro desconcertante por conta de suas notas de assombrosa erudição. Quando fixei os contos de minha recolha, iniciada no sertão baiano, e os apresentei ao professor português José Joaquim Dias Marques, em João Pessoa, por ocasião de um encontro internacional de cordel em 2005, para o qual fomos convidados, ele, gentilmente, prometeu mostrá-los a amigos, que eram, naturalmente, Isabel Cardigos e Paulo Correia, do Centro de Estudos Ataíde Oliveira, da Universidade do Algarve, Faro, Portugal. E foi com incontida alegria que recebi, cerca de dois meses depois, todos os contos classificados de acordo com o Sistema ATU ou outros  sistemas similares, com notas assinadas pelo professor Paulo Correia. As notas e a classificação foram publicadas ao final dos livros, quando estes vieram a lume.

Já são seis livros voltados ao conto de tradição oral, todos recolhidos da fonte de Mnemósine, e mais dois inéditos, além de artigos que pretendo enfeixar em um ou mais volumes. Em minha biblioteca, reservei um lugar especial para os contos tradicionais (coletânea e estudos), muitos buscados entre outros povos, de comprovada e venerável ancianidade. Por isso, quando Giuliano Terno me convidou para montar um grupo de estudos na Casa Tombada, ecos de mil vozes se fizeram ouvir. Como aglutiná-los num único caçuá? Como, usando um termo recorrente no meio universitário, esse Saturno moderno, fazer um recorte que possa abarcar memórias e afetos, sem hierarquia, sem escala de valores, sem forçada erudição ou fingida espontaneidade? Foi o que tentei fazer com a proposta que enviei, Viagem de Retorno ao País da Infância, e que o Giuliano recebeu com comovente e generosa empolgação.

Para encerrar, aviso que, apesar do nome pomposo “grupo de estudos”, levarei à Casa Tombada tão somente a mim mesmo, incompleto e imperfeito, mas movido pela mesma curiosidade menina dos tempos da candeia a querosene, nos quais os contos afugentavam os medos noturnos, ou nos convidava a enfrentá-los, e prenunciavam o parto do dia. Contos de Lua e de Sol, mergulho no inconsciente, cavalo silente a correr por reinos que vivem no mais profundo de nossa psique.  

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