O outro lado do processo de higienização, pelo qual passam os
assim chamados "contos de fadas", é o sensacionalismo. Ambos nascem
da incompreensão de que os contos de fadas e, mais amplamente, os contos
populares, são narrativas de muitas camadas por meio das quais podemos ter um
vislumbre da infância da humanidade, com seus ritos de passagem por vezes
sangrentos, expressando ora esperança, ora desespero, numa busca incessante por
compreender e aplacar a fúria da Natureza. Aspergir o sangue de uma vítima
cerimonial sobre o cereal a ser plantado é um costume que, se acreditarmos em
Frazer, sobreviveu até o século XIX, entre pelos khonds ou kandus, povo
dravidiano de Bengala. Tais sacrifícios eram feitos à deusa da terra, Tari
Pennu ou Bera Pennu, e, além das boas colheitas, ajudavam a prevenir
enfermidades e acidentes. Ingerir o cereal era, portanto, devorar a vítima,
revivida a cada refeição.
O canibalismo presente no conto Chapeuzinho Vermelho, que a
matéria da revista Mundo Estranho (Editora Abril), de 2010), que ilustra esta postagem, explora
sem qualquer aprofundamento, deixando de lado as muitas análises antropológicas
sobre o tema, serve unicamente ao imediatismo dos tempos que correm. Mais
deformação que informação, portanto. Tal prática preponderava nas sociedades
ditas primitivas, em que o corpo e o sangue do morto (ancestral), ingeridos por
seu herdeiro e sucessor, tinha, como vimos no parágrafo anterior, função
vivificadora. A protagonista do conto, lembremos, leva para a avó (ancestral)
um bolo (ou pão) e uma garrafa de vinho, prefigurando a carne e o sangue
(lembremo-nos da Eucaristia) do sacrifício a uma divindade animal, talvez um animal
totêmico, no caso, um lobo. Mas, em outros casos, como no conto da “Falsa avó”,
reescrito por Ítalo Calvino, não é um animal, mas uma ogra, que espera pela
menina que deverá ser ritualmente sacrificada.
Stith Thompson observa que os ogros são seres antropomórficos
e quase sempre criaturas sobrenaturais, habitantes da casa-limite da floresta,
da caverna ou do outro mundo. Identificam, imediatamente, o “vivo” pelo cheiro
e, não fosse a intervenção de um parente do ogro, a mãe, o pai ou o cônjuge, o visitante
do mundo dos vivos acabaria devorado. Para Vladimir Propp, os ogros são figuras
parentais, o que reforça a ideia do canibalismo ritual, com o fito de
transmitir o fluxo vital para o herdeiro. Muitas vezes, há a ingestão e
posterior regurgitação, significando um renascimento. Campbell, em O Herói de Mil Faces, dá sobejos
exemplos desse rito de passagem. O conto de Chapeuzinho Vermelho, rememorando
ainda o périplo do Sol (divindade feminina na mitologia nórdico-germânica),
perseguida pelos lobos Skoll e Hati, nos crepúsculos matutino (menina) e
vespertino (velha), é, no fundo, uma jornada iniciática na qual a morte é
sempre derrotada, como acontece nos ritos agrários, e, ao final, todos
celebrarão o triunfo da Vida.
Para saber mais:
CAMPBELL, Joseph. O herói de mil
faces. Tradução: Adail Ubirajara Sobral. São Paulo: Pensamento, 2007.
FRAZER, James George. O ramo de
ouro. Tradução: Valtensir Dutra. São
Paulo: Círculo do Livro, 1982.
PROPP, Vladimir. As raízes históricas do conto maravilhoso. 2. ed.
Tradução de Rosemary Costhek Abílio. São Paulo: Martins Fontes, 2002.
The Greenwood Encyclopedia of
Folktales and Fairy Tales, Volumes 1–3. Editada por: Donald Haase. GREENWOOD PRESS: Westport, Connecticut, London,
2008.
THOMPSON, Stith. The folktale.
New York: The Dryden Press, 1946.
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