sexta-feira, 20 de maio de 2022

O Pentameron no Brasil

Sol, Lua e Talia, versão napolitana de "A Bela Adormecida", ilustrada por Warwick Goble


Marco Haurélio[1]

São muitas as edições das obras dos Irmãos Grimm em português (completas, compactas, adaptadas, mutiladas) para todos os públicos e paladares. Não se diga o mesmo de coletâneas mais antigas e raras, dos povos mediterrânicos, em especial as da Itália, terra de abundante colheita: Le piacevoli notti, de Giovanni Francesco Straparola, sobre quem pouco se sabe, ou do Pentameron, de Giambattista Basile, para ficarmos apenas nos contos populares italianos e suas versões literárias dos séculos XVI e XVII. Embora não fossem coletores, no sentido moderno do termo, não há dúvidas de que ambos, Straparolla e Basile, ouviram muitas das estórias da oralidade, adaptando-as conforme as convenções vigentes em cada época. Straparola, cujo nome, que parece ser um apelido, significa “o que fala demais”, é uma personagem um tanto misteriosa. No Brasil, apenas a Landy Editora lançou uma versão incompleta das Piacevoli notti, traduzidas como Noites agradáveis, por Renata Cordeiro, em 2006. De O Conto dos Contos, conhecido também como Pentameron, lamentavelmente, não havia tradução para o português. Quem quisesse acessar a obra-prima de Giambattista – ou Giovan Battista – Basile teria de recorrer a edições estrangeiras.

Para nosso gáudio, agora, temos em mãos, vertida para o português, uma das obras mais importantes do barroco italiano. A iniciativa, cujo valor histórico e cultural não pode ser mensurado, coube a Francisco Degani, tradutor de Pirandello e Manzoni, que foi-se abeberar do dialeto de Nápoles do tempo de Basile, cotejando-o com o italiano moderno, seguindo as lições do mestre Benedetto Croce, que assina o prefácio da clássica edição italiana. As marcas da oralidade, o vozerio das ruas e a villanella dos campos, o cheiro dos mercados e das vielas, o calão dos portos, os longos diálogos que, por vezes, parecem monólogos, pontuados por anexins, metáforas e frases de efeito, tudo é parte de um cortejo mágico em que ressoa forte a poesia do povo, a poesia da vida.

Os Irmãos Grimm, em uma apreciação crítica publicada como apêndice aos Marchen[2], consideravam, injustamente, o Pentameron uma imitação do Decameron, de Boccaccio, embora reconhecem que a sua base era mesmo a tradição e que “durante muito tempo esta coleção de contos foi mesmo a melhor e a mais rica de todas as que foram compostas por uma nação”.[3] Mais adiante, estabelecendo um contraponto entre os contos italianos, vivazes e brincalhões, e os alemães, mais sóbrios e equilibrados, sentenciam: “Há assim um contraste marcado com o estilo tranquilo e simples dos contos alemães. É riquíssimo em expressões idiomáticas pitorescas, proverbiais e espirituosas que o autor tem sempre à disposição e que normalmente acertam em cheio”. [4] Não escapam aos Grimm, também, o excesso de metáforas, certamente sob influxo de Rabelais, além do elo de muitas estórias italianas com os contos de sua recolha, apontando trinta e três exemplares, como Petrosinela (Rapunzel), Nennillo e Nennela (Hansel e Gretel), Os três reis animais (A bola de Cristal), Sol, Lua e Talia (A bela adormecida) etc., além do vínculo do conto O dragão com o mito de Siegfried, herói da Canção dos nibelungos.

No Brasil, apenas em publicações avulsas, alguns contos de Basile podiam ser conhecidos. Abundam, no entanto, nas coletâneas de contos tradicionais, desde Silvio Romero (Contos populares do Brasil), passando por Lindolfo Gomes (Contos populares brasileiros), Luís da Câmara Cascudo (Contos tradicionais do Brasil), Doralice Alcoforado (Belas e feras baianas) etc. versões e variantes das estórias do Pentameron. A popularidade de Maria Borralheira, A Moura Torta, João e Maria, além dos contos do ciclo do noivo animal, aproxima-nos de tal forma de Basile que, ao folhearmos a sua obra, temos aquela sensação de que estamos nos debruçando sobre algo familiar. De minha parte, nos contos de coligi, sempre recorri ao Pentameron para efeito de cotejo e comparação. Nos livros Contos folclóricos brasileiros, Contos e fábulas do Brasil, O príncipe Teiú e outros contos brasileiros, Contos e lendas da Terra do Sol e Vozes da Tradição, algumas narrativas exalam o mesmo frescor das estórias napolitanas, unidas que estão pela origem comum e pela exuberância de tipos e motivos. Um conto recolhido em Igaporã, Bahia, chamado Angélica mais afortunada, com a história de um príncipe encantado em um teiú, é parente em primeiro grau de O cadeado (entretenimento nono da segunda jornada) do Pentameron. Ambos têm como ancestral o conto mítico de Apuleio, Eros e Psiquê, d’O asno de ouro, pertencendo ao ciclo do príncipe encantado em animal em cuja demanda sua esposa terá de sair depois de, imprudentemente, tê-lo perdido por conta da violação de um tabu relacionado à curiosidade. A heroína, que está grávida, dá à luz na casa da sogra, onde, depois, o marido encantado cantará uma canção de ninar para o filho (ATU 425E[5]). No conto napolitano, na tradução de Degani, eis a cantiga:

Oh belo filho meu,

se minha mãe soubesse,

em bacia de ouro o lavaria,

com faixas de ouro enfaixaria,

e se o galo nunca cantasse,

nunca de você me separaria”.

 

No conto baiano, o acalanto aparece com mais detalhes e a mesmíssima função:

— Meu filho,

se papai mais mãe soubera

filho de quem tu era,

em bacia de prata te lavava

e em toalha com fios de ouro te enxugava.

Hoje o galo canta,

o jegue urra, o sino toca:

contigo amanheço o dia.[6]

 

Pentameron (Nova Alexandria), em tradução de Francisco Degani.

Por isso, os contos do Pentameron, que sempre circularam entre nós, agora chegam vestidos de graça e de bonomia, com o toque peculiar de seu autor/coletor, que jamais escamoteia o que têm de universal, nos quais Ítalo Calvino, escrevendo em 1974, enxergou as cores da alvorada e do crepúsculo. Em seu conjunto, por sinal, os contos de Basile, que oscilam entre o sublime e o grotesco, integram o patrimônio cultural comum, que, se quisermos, podemos chamar de inconsciente coletivo, e que faz da humanidade, em que pesem as diferenças, e, certamente, por causa delas, uma mesma e barulhenta família.

Ensaio publicado na edição brasileira de O Conto dos Contos



[1] Escritor, poeta e folclorista, autor de vários livros dirigidos a crianças e jovens, além de outros resultantes de recolhas de contos tradicionais.

[2] Os Kinder und Haussmärchen (Contos da criança e do lar).

[3] Contos completos – Irmãos Grimm. Tradução: Teresa Aica Bairos, Lisboa: Círculo de Leitores, 2017, p. 904.

[4] Idem, ibidem, p. 905.

[5] Publicado em 1910, pelo finlandês Antti Aarne, o livro Verzeichnis der Märchentypen (Tipos internacionais do conto popular), reuniu, num sistema alfanumérico os contos predominantes na zona indo-europeia.  Em 1962, a obra foi ampliada por Stith Thompson, folclorista estadunidense, e os contos catalogados passaram a ser conhecidos pela sigla AT ou AaTh (em homenagem aos dois estudiosos). Em 2004, depois da atualização e ampliação levadas a cabo pelo alemão Hans-Jorg Uther o sistema passou a ser denominado ATU. Em 2013, Carolina Stromboli traduziu o Pentameron para o italiano, classificando os contos conforme a tabela ATU. Temos 41 contos maravilhosos (incluindo dois não classificados), sete realísticos e dois humorísticos.

[6] Veja-se HAURÉLIO, Marco. Contos e fábulas do Brasil. São Paulo: Nova Alexandria, 2011, p. 65.

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