quarta-feira, 22 de junho de 2011

A Mãe d'Água: um conto universal

O segredo de Melusina revelado, do Le Roman de Mélusine, 
de Guillebert de Mets, cerca de  1440

Reproduzo, agora, o conto A Mãe d’Água, do livro Lendas e fábulas do Brasil, de Ruth Guimarães. Trata-se, claramente, de uma versão literária de um conto recolhido por João da Silva Campos, da antologia Contos e fábulas populares da Bahia. Replico, ainda, a nota que fiz para o conto A Mãe d’Água do São Francisco, história que fecha o livro Contos e fábulas do Brasil e contempla igualmente a presente versão.

"Era uma vez um homem muito pobre que tinha uma boa plantação de melancias na beira do rio. Porém, quando estavam as pesadas frutas maduras, e ao calor se via o coração vermelhando, ele não podia colher uma só. Desapareciam de noite. Ele procurava os rastros do ladrão, nada encontrava na terra fofa. "Deve ser algum canoeiro, que vem pela água". Acreditando nisso, escondeu-se por trás de umas moitas e passou parte da noite espiando. Nada viu na primeira noite, nem na segunda. Na terceira, ouvindo um leve rumor para os lados do rio, foi devagarinho até lá, e viu uma moça linda como os amores, de compridos cabelos verdes, e olhos d’água profunda, colhendo as melancias todas. Foi atrás dela, bem devagarinho, pé por pé, e agarrou-a.

– Ah! Danada – gritou. – É você quem carrega as minhas melancias. Pois agora você vai para minha casa, para se casar comigo.

– Eu não – gritava a moça. – Eu não.

Mas o homem era forte e ela foi.

– Bem feito para mim, que roubava as frutas – disse ela.

– Você então se casa comigo? – perguntou o homem,
 embevecido com a sua beleza.l


– Caso. Mas tem uma coisa.

– O que?

- Nunca arrenegue de gente debaixo d’água.

– Pois sim. Nunca arrenegarei.

Foram para a cidade, num domingo, para se casar. Juntou gente para ver moça, tão linda, com seus cabelos verdes, e olhos de água verde, tão linda! Entrou na casa do pobre e com ela o milagre. E com ela a fartura. O melancial deu de arrebentar em melancias de arroba. O arrozal pendia de espigas enormes. Nas laranjeiras era preciso pôr escoras, pois vinham abaixo com as laranjas. E as vacas tinham bezerros formosos. As ovelhas, tanta lã que as maçarocas tiradas cada verão deram um fabuloso lucro. E era tudo assim. O homem fazia um negócio, ganhava um mundo de dinheiro. Comprou escravos, comprou terras, aumentou as plantações. Adquiriu mobílias, louças, jóias, roupas. O gado inumerável, dinheiro de não se acabar, escravaria, tudo que tinha se multiplicado. Tudo que não tinha lhe veio ter às mãos. Corria tudo muito bem, quando a moça começou a se desleixar. Andava pela casa com os vestidos esfrangalhados, emaranhada a bela cabeleira. Como não tomava conta de nada mais, os escravos também nada faziam. E era uma sujeira de dar nojo, pela casa toda. Os filhos de carinha suja choramingavam de fome. O marido pedia:

- Mulher, tome conta da casa. O que foi isso? Você era tão prestimosa…

A moça nem respondia. E a casa e ela e os filhos continuavam na mesma.

Um dia, o homem, arreliado, falou:

- Arre, também, que já estou perdendo a paciência. Arrenego de gente debaixo d’água.

A moça, que estava sentada, levantou-se mais que depressa e foi andando em direção ao rio, ao mesmo tempo que cantava:

"Zão, zão, zão, zão
Calunga,
Olha o munguelendô,
Calunga,
Minha gente toda
Calunga
Vamos embora,
Calunga"

O homem gritou:

- Não vai lá não, mulher.

E ela, sem olhar para trás, ia andando. Atrás dela foram saindo os filhos, os escravos, o pessoal jornaleiro das roças:

"Zão, zão, zão, zão
Calunga,
Olha o munguelendô,
Calunga,
Meus bichos todos
Calunga
Vamos embora,
Calunga"

Com vagaroso passo foram os rebanhos se dirigindo para o rio. Foram as vacas de leite, os bois de carros, as ovelhinhas brancas de neve, cabras e cavalos e burros, bestas de carga, até o cachorrinho, até o gato, até a tartaruguinha com que as crianças brincavam, e o papagaio. Alcançaram a Mãe d’Água, passaram adiante dela, foram andando para o rio e entrando n’água como se pisassem no terreno limpo, e desaparecendo aos poucos, sem alarido.

"Zão, zão, zão, zão
Calunga,
Olha o munguelendô,
Calunga,
Meus "terens" todos
Calunga
Vamos embora,
Calunga"

- Não vá embora não, minha mulher – o homem gritava.

Os móveis, as jóias, a louça, os baús, começaram a pular em direção ao rio. Até a casa se sacudiu e pulou. Cercados, telheiros, galinheiros, cercas de divisa, plantações, foi tudo engolido pelas águas. Dentro em pouco, a moça, cantando, mergulhou também. Quando o homem viu, estava sozinho, na margem tranqüila, com as suas roupas de pobre, e na terra somente havia uma plantaçãozinha reles de melancia.

Ele foi viver de novo pobremente, de vender as frutas, mas também nunca mais a Mãe d’Água buliu na sua roça".

Nota: Câmara Cascudo registrou em Natal (RN) O marido da Mãe d’Água, ouvido do pescador Antônio Alves, no qual o pacto, como no nosso conto, é rompido pela violação da promessa feita pelo cônjuge de nunca arrenegar da gente da água. Na Europa, a tradição do casamento sobrenatural alimenta a lenda de Melusina, viva durante muito tempo na tradição oral do oeste da França. Mas a popularização definitiva veio no século XV, quando Jean d’Arras deu forma literária à lenda, abaixo resumida:

  O conde Aymery de Poitiers, suserano de Basse-Marche, perseguia um monstruoso javali, auxiliado por seu sobrinho Raymondin, na floresta de Colombier. Os dois acabam se separando. Quando reencontra o tio, Raymondin percebe que ele está sendo atacado pelo javali. Atira a lança, matando a fera e o tio ao mesmo tempo. Desolado, sai sem destino até que, ao romper da aurora, se encontra em frente à Fonte das Fadas, onde uma donzela de grande beleza estava à sua espera. Ela lhe explica que, por ter sido um acidente, ele não pode ser acusado e nem tem culpa pela morte do tio. Em seguida, propõe um pacto, unindo as duas descendências. Ao temor do jovem, Melusina, a fada, teria respondido: “Eu sou da parte de Deus”. Vieram os filhos, marcados por sinais indicadores da sua dupla origem — um olho fora do lugar, uma orelha muito grande etc. De sábado a domingo, no entanto, a esposa ia em direção a uma torre. Seu marido, agora conde de Lusignan, prometera não segui-la, mas, tomado pela curiosidade, não cumpre a promessa. Na torre, ele a surpreende ao lado de uma moça nua que lhe trançava os cabelos. Percebe, apavorado, que o corpo da esposa terminava numa cauda cheia de escamas que se enroscava entre os nenúfares. Apavorado, o conde se benze e a mulher, por conta da violação, após soltar um grito de dor, lança-se da janela, agora transformada numa serpente alada. Mesmo não reaparecendo mais, tornar-se-á a protetora da casa de Lusignan, que cumpriria um destino glorioso na história francesa. Em diferentes épocas o mito será enfocado por Rabelais, Nerval, Peladan e André Breton.

  No conto O marido da Mãe d’Água há uma similaridade: no momento do encontro, ao ser instada se era uma alma penada, a Ondina responde: “ — Não sou alma penada, cristão! Sou a Mãe d’Água!” — repetindo a Melusina da tradição francesa, que dizia ser “da parte de Deus”. Câmara Cascudo cita dois episódios colhidos por João da Silva Campos, “com visível coloração negra”. Na verdade, são três, se incluirmos o conto A caça do mundé (LXII). Um caçador toma posse de uma roça abandonada e apanha no mundé uma moça que, em troca da liberdade, convida-o a viver em sua casa, impondo-lhe uma condição: nunca alegar que ela fora caçada num mundé. O homem passa a viver num castelo, mas, tornando-se soberbo, esquece-se da promessa e, depois de esperar mais do que o normal, pelo jantar, profere a frase fatal: “— Você bem mostra que foi caça no meu mundé...” — e a esposa, que só esperava que ele dissesse isso, desaparece, e com ela todo o esplendor. O homem reaparecerá no mesmo lugar do início da história, com sua espingarda e seus apetrechos de caça. Campbell, em O herói de mil faces, cita as mulheres selvagens, seres peludos que habitam cavernas nas montanhas e são muito temidos pelos camponeses russos. “Gostam de dançar ou fazer cócegas, até levar à morte as pessoas que caminham sozinhas pela floresta.” Ainda segundo Campbell, “muitas já se casaram com jovens camponeses, e, pelo que se diz, são excelentes esposas. Mas, como todas as noivas sobrenaturais, no momento em que o marido faz a mínima ofensa às suas noções extravagantes do comportamento conjugal adequado, elas desaparecem sem deixar vestígios”.
Yuki-Onna, a noiva sobrenatural dos contos folclóricos
 japoneses em gravura de Sawaki Suushi (1737)

  No Japão, Yuki-ona é, num dos contos do Kwaidan, de Lafcadio Hearn, a personificação do inverno naquele país. Hearn conta como os lenhadores Minokichi e Musaku, numa noite de tempestade, buscam abrigo numa cabana. O velho Musaku é morto por Yuki-onna, enquanto Minokichi é poupado, entre outros motivos, por ser ainda bem jovem. Não sem a advertência de que jamais deverá falar a ninguém sobre o encontro. Tempos depois, conhece uma jovem de pele muito alva, a quem desposa e de quem tem dez filhos. Uma noite, ao olhá-la costurando, ele relembra o dia fatídico em que conhecera Yuki-onna. Ela, então, revela sua verdadeira identidade, mas, por amor aos filhos, não cumpre a promessa. E, fundindo-se com o brilho da bruma branca, desaparece, não sendo mais vista pelo desventurado esposo.

  Nihil novi.

Por Marco Haurélio

domingo, 19 de junho de 2011

A Moça Tecelona


Ilustração de Maurício Negro
Essa história é um exemplo para aqueles que gostam de levar vantagem em cima dos outros. Fala de uma moça que vivia fazendo fio num tear. Por isso, era chamada de  tecelona.  Ela fazia o serviço no salão de uma casa grande, que tinha um monte de tear, onde outras mulheres também trabalhavam. Quando as outras saíam, a tecelona tirava um pedaço do fio de cada uma e, de forma desonesta, aumentava a sua produção. E a sua renda.
  O tempo foi passando, passando, mas ela nunca perdeu o mau costume. Até que chegou o dia de sua morte. A tecelona então viu um fio que descia do céu. Por ele ela começou a subir ao céu. Subiu até certo ponto, mas não pôde prosseguir, pois surgiu um trançado de fios que não a deixava ir mais para cima. Eram os mesmos fios que ela roubara das companheiras de ofício e que agora impediam sua entrada na glória.

Isaulite Fernandes Farias (Tia Lili)
Igaporã, Bahia.

Nota: Conto em que a noção hindu de carma parece ser mais forte que a noção cristã de pecado. Integra a  seção das histórias de exemplo da coletânea Contos folclóricos brasileiros (São Paulo: Paulus, 2010, p. 121). Tia Lili também marca presença na obra Contos e fábulas do Brasil.

sexta-feira, 17 de junho de 2011

Uma versão prosificada da Bela Infanta

Apresento, agora, uma interessante fusão de conto popular com romance. A informante é D. Maria Rosa Fróes, de quem recolhi muitas histórias. Algumas com a colaboração de Giselha Rosa Fróes, neta de D. Maria e minha ex-colega do curso de Letras em Caetité-Bahia.

O homem que foi para a guerra

  No tempo dos cativos, vivia um homem muito rico, casado com uma mulher virtuosa, como igual não podia haver. O casal tinha uma única filha com idade de dois anos. Um dia, ele foi convocado para lutar numa guerra. A mulher implorou para ele não ir, pois sabia-se quando as guerras começavam, mas não quando acabavam. Não houve jeito. Antes de partir, ele pegou dois anéis de ouro de sete pedras cada um, e disse à esposa:
  — Guarde bem esse anel — e pôs o seu no dedo.
  Chegando ao local da guerra, ele foi trabalhar a favor do seu rei. Os anos se passaram. Todo dia, a mulher ia até o porto, sempre acompanhada dos criados e da filha, para ver os navios que partiam e chegavam de outros países. Sua esperança era que o marido estivesse num desses navios. Mas qual!
  — Ah, seu pai não veio — dizia, decepcionada, mas esperançosa.
  Quando a menina fez dezoito anos, a mãe convidou:
  — Chegou outro navio. Vamos ver se seu pai está nele.
  Quando os marinheiros desceram, ela viu um homem que a encarava, e resolveu perguntar a ele:
  — Bom-dia! O senhor dá notícia de Dezoitozinho? — esse era o nome do homem.
  — Dou. Ele foi para a guerra.
  — Disso eu sei! E como ele vai passando por lá?
  — A última vez que o vi, ele tinha dezoito sinais. O mais pequititinho era de pescoço cortado!
  — Então morreu! — disse a mulher.
  — Quando eu vi, não tinha morrido ainda! Onde a senhora mora?
  — Aqui perto. Por quanto o senhor traz ele aqui?
  — Eu não sei.
  — Se o senhor o trouxer, terá prata e terá ouro que nem poderá contar.
  — Eu não quero sua prata nem seu ouro, que tudo pertence a mim.
  — Eu lhe dou um capital se trouxer ele aqui.
  — Não quero sua prata, nem quero seu ouro. Quero seu corpinho jocoso para comigo dormir.
  Ela, aí, ficou brava e ordenou:

  — Vão, meus criados, com corda de piaçava, peguem dois cavalos brabos e amarrem esse atrevido! E ao redor de minha casa rodem com ele assim.
 
— Afastem pra lá, criados,
  que tudo pertence a mim. 
  Senhora, se não se lembra
  quando daqui eu saí,
  dos anéis de sete pedras
  que eu contigo parti?

  Ela, então, perguntou:

  — Se tu eras meu marido,
  por que me fizeste assim?

  — Fiz para experimentar
  se tu eras firme a mim.
  Apanha teu anel lá,
  que o meu está aqui.

  A mulher reconheceu o marido e ele abraçou a filha que deixara ainda criança. E os três foram viver felizes.

In: Contos e fábulas do Brasil, págs. 189-190.

Maria Rosa Fróes, Brumado, Bahia
Nota:  Ecos da  Odisseia permeiam os versos finais de  Dona Infanta (também conhecido como Bela Infanta), romance velho que aparece neste florilégio sob o título O homem que foi para a guerra, em versão prosificada. É vasta a bibliografia portuguesa documentada por Câmara Cascudo em suas anotações aos Cantos populares do Brasil, de Silvio Romero. Almeida Garret, que coligiu o romance, atribui a sua origem às guerras das Cruzadas, por conta das expressões “terra sagrada”, “na ponta de sua lança/ a cruz de Cristo levava” etc.
  As senhas ardilosas do marido, testando a fidelidade da esposa, no entanto, parecem remeter mesmo aos tempos homéricos, e demonstram cabalmente tratarem-se os personagens de avatares de Ulisses e Penélope.

Abaixo o romance recolhido por Silvio Romero, no séc. XIX:

Estava Dona Infanta
No jardim a passear;
Com o pente douro na mão
Seu cabelo penteava;
Lançava os olhos no mar,
Nele vinha uma armada.
Capitão que nela vinha
Muito bem a governava.

"O amor que Deus me deu,
Não virá na vossa armada?
—Não o vi, nem o conheço,
Nem a sina que levava.
"Ia num cavalo douro
Com sua espada dourada,
Na ponta de sua lança
Um Cristo douro levava.

—Por sinais que vós me destes
Lá ficou morto na guerra,
Debaixo duma oliveira
Sete facadas lhe dera.
"Quando fordes e vierdes
Chamai-me triste viúva,
Qu'eu aqui me considero
A mais infeliz sem ventura.

—Quanto me dareis, senhora,
Si vos eu trouxe-lo aqui?
"O meu ouro e minha prata,
Que não tem conta nem fim.
—Eu não quero a tua prata,
Que me não pertence a mim;
Sou soldado, sirvo ao rei,
E não posso estar aqui.
Quanto me dareis, senhora,
Si vo-lo trouxer aqui?
"As telhas de meu telhado
Que são de ouro e marfim.

—Eu não quero as tuas telhas,
Que me não pertence a mim;
Sou soldado, sirvo ao rei,
E não posso estar aqui.
Quanto me dareis, senhora,
Si vo-lo trouxer aqui?
"Três filhas que Deus me deu
Todas te darei a ti,
Uma para te calçar,
Outra para te vestir,
A mais linda delas todas
Para contigo casar.

Eu não quero tuas filhas,
Que me não pertence a mim;
Sou soldado, sirvo o rei,
E não posso estar aqui.
Quanto me dareis, senhora,
Si vos eu trouxe-lo aqui ?
"Nada tenho que vos dar
E vós nada que pedir.

—:Muito tendes que me dar,
Eu muito que vos pedir:
Teu corpinho delicado
Para comigo dormir.

"Cavaleiro que tal pede
Merece fazer-se assim:
No rabo de meu cavalo
Puxa-lo no meu jardim!

Vinde, todos meus criados,
Vinde fazer isto assim.
—Eu não temo os teus criados,
Teus criados são de mim.

"Si tu eras meu marido,
Porque zombavas de mim?
—Para ver a lealdade
Que você me tinha a mim.

O livro Contos e fábulas do Brasil será lançado dia 20 de agosto.

sábado, 11 de junho de 2011

Presença dos Contos Tradicionais de Câmara Cascudo na Literatura de Cordel



Contos Tradicionais do Brasil em edição da Global Editora
Contar histórias tem sido, ao longo das eras, um assunto sério e também um amenoentretenimento. Ano após ano, histórias são inventadas, escritas, devoradas e esquecidas. Que acontece com elas? As poucas que sobrevivem e que, como sementes dispersas, o vento esparge durante gerações, engendram novos contos e proporcionam alimento espiritual a inúmeros povos. (...) Cada poeta acrescenta algo da substância de sua própria imaginação e as sementes, nutridas, revivem.(Heinrich Zimmer)

No Brasil, à margem da cultura livresca, dos moldes forçosamente importados, dos salões engalanados, vicejou opulenta, portentosa, espantosa literatura oral, fazendo, muitas vezes, pela boca de uma única pessoa se manifestarem civilizações há muito defuntas. Pode se argumentar que apenas um retalho, ou, menos ainda, um fiapo das antigas tradições chega até nós. Mas não é pouco. Na contística popular do Nordeste, por exemplo, é possível se escutar uma história que, em linhas gerais, é a mesma que os povos estabelecidos à margem do Nilo, no Egito, repetem há mais de 3.000 anos. As nossas orações aos santos, ligeiramente modificadas, em tempos de antanho, devem ter acalmado a fúria e comprado o obséquio de muitos deuses de incontáveis panteões. Dessa literatura oral a arte de um país que se pretende sério será sempre a maior tributária. A Literatura de Cordel é um dos galhos desta árvore. Se dela se desprender, perderá o sentido e a razão de existir.

A Literatura de Cordel no Brasil, a partir dos poetas pioneiros Leandro Gomes de Barros e Silvino Pirauá de Lima, sempre teve no conto popular um motivo essencial. As histórias que sobreviveram à peneira do tempo e chegaram até nós, refundidas em versos de sete sílabas, são o que há de mais característico no Cordel. Embora determinados pesquisadores reduzam o Cordel no Brasil à sua (importante) função de “jornal de povo”, é no manejo do material tradicional, oriundo ninguém sabe d’onde, trazido ninguém sabe por quem, que o poeta popular sempre estará mais à vontade. Foi dos contos populares, em suas múltiplas classificações, que nos chegaram os grandes clássicos da Literatura de Cordel.Os motivos dos romances e folhetos são os mais diversos: princesas encantadas, como Rosamunda ou a da Pedra Fina; heróis imponentes enfrentando todo tipo de perigo e malefício, a exemplo de João Corajoso, João Valente, João Sem-Medo, João Acaba-Mundo, João de Calais, João Soldado e, para variar, Juvenal e o príncipe Roldão. Estes são personagens saídos diretamente dos contos maravilhosos, também chamados contos de encantamento ou, por influência europeia, contos de fadas.

Mas o universo do Cordel é bem mais amplo: engloba ainda as histórias de animais, calcadas nas velhas fábulas, onde o riso brota espontâneo nos lábios de quem as lê ou as escuta. É a magia da literatura oral preservada no bom Cordel. Falando em riso, alguns personagens do Cordel, famosos por sua peraltice, têm origem também nos contos populares. Os exemplos mais notórios são os de João Grilo e Pedro Malazarte (ou Malasartes). São os amarelinhos, que trapaceiam os poderosos, sejam eles fazendeiros, sultões, ou o próprio Diabo. À lista dos sabichões devem ser acrescentados Cancão de Fogo, criação do genial Leandro Gomes de Barros, que estreou no Cordel antes de seus colegas Grilo e Malazarte, e também os poetas portugueses Camões e Bocage. Estes últimos, nos contos faceciosos, nas anedotas e no Cordel, possuem os mesmos atributos dos amarelinhos.

No Cordel, as histórias dramáticas quase sempre têm origem em livros de grande aceitação popular. Em alguns casos parecem fugir à estrutura do conto tradicional, embora tragam elementos originários deste, como a condenação de uma pessoa à morte, para se evitar o cumprimento de uma profecia. Outras vezes, tal condenação se dá por uma falsa acusação, geralmente imputada a uma esposa virtuosa por um cunhado devasso. A vítima é salva na última hora por um surto de piedade do carrasco e pelo acaso feliz de sempre ter um animalzinho por perto, que será morto em lugar do (a) condenado (a), fornecendo um pedaço de seu corpo (língua, fígado, coração) para comprovar a execução. O divulgadíssimo conto Branca de Neve e os Sete Anões (na versão dos Irmãos Grimm) e Maria de Oliveira, recolhido por Câmara Cascudo, trazem o mesmo motivo que, aliás, está na Bíblia, no livro de Gênesis, mais especificamente na história de José, quando seus invejosos irmãos ludibriam o pai, Jacó, fazendo-o crer na morte do filho, apresentando como prova suas vestes manchadas em sangue de carneiro.

É de Câmara Cascudo que passaremos a falar agora. Aliás, do universo da novelística popular a quem o devotado Mestre rio-grandense do norte dedicou alentados estudos, além de registrar algumas das mais belas versões, enfeixadas no volume Contos Tradicionais do Brasil. Todavia, seu trabalho ultrapassou o registro e a classificação dos contos. Pesquisador infatigável em sua honestidade intelectual, Câmara Cascudo estudou as raízes históricas e imaginou um possível trajeto que, nas veredas do espaço e do tempo, tenha possibilitado a esse tesouro imaterial chegar até nós e por aqui se aculturar. Quando possível, ele nos aponta referências na literatura clássica, detecta as pegadas dos heróis do conto maravilhoso em episódios da mitologia greco-romana e nos livros de indiscutível ancianidade da Índia dos Vedas e do Mahabharata.

Meu papel é estabelecer ligações entre os contos populares recolhidos e anotados por Câmara Cascudo e os folhetos e romances de Cordel diretamente inspirados nesta fonte ou que, mesmo com outra origem, estão vinculados ao trabalho do Mestre, que, melhor do que ninguém, conhecia a universalidade dos temas, tipos e motivos. Só é preciso atentar para um detalhe: às vezes acontece de o poeta popular, garimpeiro do inconsciente coletivo, se valer de mais de uma história para, ao final, apresentá-la como narrativa única. Exemplo: Proezas de João Grilo, de João Ferreira de Lima, é uma reunião de pequenas facécias, enfeixadas numa única história, resultado de uma compilação que tornará possível ao Grilo saltar do “sítio onde morava” para o Egito. Lá, terá de responder às perguntas do rei Bartolomeu, o sultão, dentre elas, o mesmo enigma que a Esfinge, um dos símbolos do Egito, propôs a Édipo:

Responda qual o animal
Que mostra mais rapidez
Que anda de quatro pés
De manhã por sua vez
Ao meio-dia com dois
À tardinha anda com três.

Tal qual o desafortunado herói grego, João Grilo responde que o animal em questão é o homem nas diferentes etapas de sua vida. Não por acaso, um dos contos da safra de Câmara Cascudo, Adivinha Adivinhão, compõe o mosaico de proezas do célebre amarelinho. O livro das Mil e Uma Noites traz exemplos muito próximos do motivo da inteligência posta à prova, enredo básico de muitos títulos de Cordel, sobressaindo-se no gênero a História da Donzela Teodora. Câmara Cascudo, aliás, nem ousava discutir a origem árabe da Donzela, no que estava coberto de razão. Há versões da mesma história nas Mil e Uma Noites, em que a Teodora tem o nome de Escrava Simpatia (La Docta Simpatia, em Cinco Livros do Povo).

Câmara Cascudo e Silvio Romero registraram, respectivamente, A Princesa Adivinhona e O Matuto João, em que o protagonista é um amarelo que decifra um enigma, obtendo como prêmio a mão da princesa que o formulara. Obviamente, o amarelo não é outro senão o nosso João Grilo, irmão gêmeo de Pedro Malazarte e, como foi comprovado, parente não muito distante da Donzela Teodora.Portanto, não mentem os que afirmam que o nosso João Grilo, apresentado ao mundo por Ariano Suassuna, como símbolo da malícia e sabedoria do nordestino espoliado, é um personagem das Arábias.Como o percurso da literatura oral é o mais improvável, até os célebres contos de Grimm e Perrault estão espalhados, na íntegra ou em partes, nas coletâneas de Câmara Cascudo e de outros folcloristas e na memória de muita gente ainda viva mas silenciada pela televisão.

Chapeuzinho Vermelho, O Pequeno Polegar, Joãozinho e Maria, entre outros, estão presentes no Contos Tradicionais do Brasil, sem falar de Bicho de Palha, versão tupiniquim de Pele de Asno, de Perrault. O conto Os Quatro Irmãos Habilidosos, de Grimm, mereceu do poeta popular Manoel D’Almeida Filho uma adaptação famosa, Os Quatro Sábios do Reino. Assim como O Fogo Rejuvescedor, também da coleta dos alemães, foi rebatizado em Cordel: Jesus e o Mestre dos Mestres. E, geralmente, as fontes do poeta popular não são os livros impressos mas o livro, o grande livro que é o inconsciente coletivo.

Algumas vezes se faz presente na história em Cordel um ou outro episódio onde se evidencia a matriz do conto popular. O ciclo que Câmara Cascudo denominou Natureza Denunciante fornece um motivo relevante para aquela que talvez seja a mais comovente história urdida por um bardo popular, O Cachorro dos Mortos, de Leandro Gomes de Barros. A cena é esta: a jovem Angelita, após ver seus irmãos serem mortos pelo brutal Valdivino, por ela repudiado, evoca as únicas testemunhas do bárbaro crime – ela morreria em seguida –, que eram o cachorro Calar, um “gameleiro” e uma flor. Reafirmando a sabedoria popular, o assassino retorna ao local do crime e é reconhecido pelo cachorro, despertando com sua algazarra a desconfiança das autoridades presentes a uma festa anual realizada no local onde os três desventurados irmãos receberam sepultura. Uma carteira encontrada por duas crianças num ninho de rato no “gameleiro” com uma confissão de próprio punho do assassino, é a prova cabal de seu crime e a realização do decreto de uma justiça invisível porém infalível, na qual ainda creem os nossos autênticos sertanejos.Na linha do exemplo famoso, reproduzido na sinopse acima, Câmara Cascudo nos conta de um homem curiosamente chamado Valdivino, assassinado por ladrões num ligar deserto. As testemunhas do crime são duas garças que passam voando e a quem Valdivino recorre no momento derradeiro. Numa ocasião festiva, um dos bandidos se trai justamente no momento em que passam duas garças voando e que ele, distraidamente, exclama: “Lá vão as testemunhas de Valdivino!...” Os circunstantes, amigos do desaparecido, descobrem os criminosos e, como no famoso romance de Leandro, a natureza denuncia mais um crime...

Enfim, são muitas as associações entre a Literatura de Cordel e os contos populares, quaisquer que sejam os gêneros ou os ciclos temáticos. Algumas vezes essas associações aparecem sutilmente costuradas num enredo mais denso, mas perfeitamente integradas à trama, como em O Cachorro dos Mortos.


Mestre Câmara Cascudo


Nota do blog: Parte deste texto integra a introdução da caixa temática 12 Contos de Cascudo em Cordel, editada pela Queima-Bucha.

Artigo postado originalmente no blog Cordel Atemporal.

sexta-feira, 10 de junho de 2011

Isabel Cardigos e os contos do sertão-mundo


O Príncipe Teiú, conto de encantamento em ilustração de Severino Ramos

Contos e fábulas do Brasil aparece na sequência de Contos folclóricos brasileiros, estes particularmente destinados ao mundo infantojuvenil. Mas é sabido que o contador conta a quem o quiser e souber ouvir, não escolhendo idades. Quando passados à escrita, foi então possível fazer uma triagem de afinidades entre contos e leitores. Ambos os livros foram levados a cabo com o mesmo cuidado e profissionalismo, mas a presente coletânea avança um trabalho de contextualização e informação que vai ao encontro da curiosidade do leitor adulto que, distanciando-se da história, quer saber mais dos “quandos”, “comos” e “porquês” dos contos que vai lendo.

Enquanto Contos folclóricos brasileiros era uma deliciosa extensão de um brinquedo, com as suas deslumbrantes ilustrações e páginas coloridas, Contos e fábulas do Brasil é um livro de referência, a enriquecer uma biblioteca, não só pela esplêndida e profusa amostragem de contos do sertão baiano, apresentados por subgêneros e todos documentados, como esteticamente, com incisivas ilustrações que fazem agora uma elegante divisória entre cada subgênero.

Marco Haurélio, estudioso da literatura popular, da qual se tornou entusiasmado cultor e difusor, reconta com uma perfeita dosagem entre rigor e criatividade as belíssimas histórias lembradas e recolhidas “com o auxílio de valiosos colaboradores”, recorrendo ao seu vasto saber sobre o cordel e a uma bibliografia que pode, por sua vez, cativar e orientar quem vier a sentir-se preso nesta sua imensa e fascinante teia dos contos do sertão baiano – e de todo o mundo.

Damos as mais calorosas boas vindas a Contos e fábulas do Brasil – um livro fadado para ter a maior sorte: entre os adultos e entre aquelas crianças felizes a quem os adultos vão saber recontar estas histórias para que, com a ajuda da escrita, continue a correr a antiquíssima magia dos contos de tradição oral.

Isabel Cardigos, coordenadora do Centro de Estudos Ataíde Oliveira Universidade do Algarve, Faro, Portugal.

Nota do blog:A professora Isabel Cardigos assina o texto de orelha do livro Contos e fábulas do Brasil. É escusado dizer que, para mim, isso é motivo de grande honra.


sexta-feira, 3 de junho de 2011

O macaco e a onça, uma fábula sertaneja

Ilustração de Severino Ramos


Desde que o geólogo canadense Charles Frederick Hartt escreveu o ensaio pioneiro Amazonian tortoise miths, publicado em inglês, no Rio de Janeiro, em 1875, muitos outros estudiosos já foram a campo em busca de material etnográfico, reunindo contos de animais, que supunham ser de origem indígena. A coletânea de Hartt trazia oito histórias do jabuti, a tartaruga amazônica do título, cumprindo o papel de animal mais fraco que derrota o mais forte por meio da astúcia. Um ano depois, viriam a lume as fábulas coletadas pelo general Couto de Magalhães e reunidas no livro O selvagem, publicado em tupi e em português.

  O exemplar que reproduzo, extraído do livro Contos e fábulas do Brasil (Nova Alexandria), O macaco e a onça, contrapõe a esperteza do animal mais fraco à estultícia do mais forte.
 O livro Contos e fábulas do Brasil será lançado dia 20 de agosto, na Livraria da Vila da Fradique Coutinho.


Os bichos fizeram uma festa, e a onça convidou o macaco. Ela pensava num jeito de almoçá-lo. Ele, que de besta não tinha nada, pensou em recusar. Mas, refletindo, disse:
— Não posso, amiga onça; estou muito doente para caminhar, mas se você me deixar montar nas suas costas, eu vou.
E tanto o macaco insistiu que a onça acabou aceitando. Aí o macaco começou a fazer exigências:
— Então deixa eu botar um bichinho nas suas costas.
— Ah! Já quer me botar sela? Tá bom, eu deixo.
— Agora, deixa eu botar um bichinho na sua boca.
— Ah! Já quer me botar brida pra tirar tirão? Tá bom, eu deixo.
— Agora, deixa eu botar aquele bichinho no meu pé.
— Ah! Já quer calçar espora? Tá bom, eu deixo.
— Agora, deixa eu pegar aquele bichinho que bate nas costas.
— Ah! Já quer usar chicote? — a onça refugou, mas também acabou aceitando: — Tá bom, eu deixo.
E o macaco se mandou para a festa, encalcando a espora na onça.
Quanto mais ela pulava mais o macaco descia-lhe o chicote no lombo. Quando chegaram, a onça já estava virada no bicho. O macaco desceu e a amarrou no mourão. O malandro entrou no salão e sambou a noite toda. Depois comeu um grande pedaço de carne e atirou os ossos para a onça, que, retada pelo vexame, começou a chamar:
— Vem logo, amigo macaco!
— Vou hoje, vou amanhã! Vou hoje, vou amanhã!
Quando o macaco resolveu ir, o dia já estava amanhecendo. Então ele chamou os outros bichos:
— Vem, gente, orear a onça pr’eu montar.
Depois montou e saiu em disparada, tão rápido que bateu num pau, caindo macaco pra um lado, sela pra outro, deixando a onça livre. A onça, então, o ameaçou:
— Vou te esperar na bebida, amigo macaco! — e ficou montando guarda na beira do córrego.
Passou o tempo, e o macaco estava morto de sede, mas não ousava se aproximar do lugar com medo de a onça vingar a desfeita. Aí o macaco achou um jeito de enganá-la de novo: pegou umas cabaças e um machado e passou perto da amiga, que lhe indagou:
— Aonde vai, amigo macaco?
— Vou ali furar umas abelhas.
— Então traz um pouco de mel pra mim.
— Trago sim, amiga onça.
O macaco encheu as cabaças de mel e a algibeira de espinho.
Chegando à bebida, disse pra onça:
— Fecha os olhos e abre a boca.
Ela desconfiou, mas o macaco despejou um pouco de mel em sua boca e, assim, enganou a tonta, que pediu mais:
— Mais um pouco, amigo macaco.
— Lá vai! — disse o macaco, e despejou todo o espinho na boca da onça, que, engasgada, saiu em disparada, deixando a bebida livre para o macaco, enfim, matar a sede.
Jacinto Farias Guedes,
Brejinho, Igaporã, Bahia.

Nota (por Paulo Correia)
Classificação: ATU 72 (O coelho monta a raposa) + Hansen **74 D (O coelho tem sede e quer beber num rio guardado pelo tigre)
Versões: (para o ATU 72) 5 africanas; 14 brasileiras; (para o **74 D) 4 portuguesas;
6 africanas; 31 brasileiras.
Nota: A primeira parte deste conto é nitidamente afro-brasileira. A segunda parte (com um coelho besuntado com mel e coberto de folhas para tentar enganar o predador que está de guarda ao rio), embora exista em Portugal, está mais próxima das variantes africanas, em que a estratégia de dar mel ao guarda é crucial para o êxito da manobra.


Jacinto Farias Guedes, nascido em 1930, na zona rural de Igaporã, sempre viveu da lida na roça. Católico, é irmão de Manoel Farias Guedes, já falecido, que também figura entre os informantes do livro Contos e fábulas do Brasil. Jacinto tem predileção por contos de animais e de encantamento. A maior parte das histórias vem da infância. Ouviu-as, conforme depoimento, de uma pessoa chamada Chico Norberto. Figura também entre os contadores de história do livro Contos folclóricos brasileiros (Paulus, 2010).

quarta-feira, 1 de junho de 2011

O preguiçoso (conto jocoso)


Imagem de abertura da seção dedicada aos contos jocosos (por Severino Ramos)
                

Um homem preguiçoso vivia com a mulher muito trabalhadeira. A casa deles era de vara, e a mulher, cansada de passar frio, teve que encher as paredes sozinha: carregou todo o barro e fez o serviço, enquanto o marido permanecia o dia todo deitado no chão, palitando os dentes e pitando seu cigarro de palha.
Tudo o que a mulher mandava fazer, ele vinha com uma desculpa para não realizar o serviço. Um dia, ela disse:
— Marido, vai ao mato caçar uma paca gorda pra nós fazer um cozido gostoso.
E o preguiçoso vinha com a desculpa:
— Ô minha veia, você quer meu mal?! Pra eu armar uma arapuca, tenho que pegar no machado, ele bate no meu pé e, aí, é desgraceira na certa! No mato tem onça. Se a onça me pega, me come. É melhor ficar por aqui.
A mulher se azoretava e dizia:
— Então, marido, levanta daí e vai botar um roçado, que a chuva já tá pra chegar!
— Mulher, a chuva que Deus dá no roçado dá no mato também. Não precisa de tanta arribação!
E a mulher, que já não aguentava mais, dizia:

Miserável, marido, como você
era melhor não ter.
Cachorro há de te latir
e cobra há de lhe morder.
Tanta preguiça,
só falta ser enterrado vivo,
e é isso que eu vou fazer!

Ele achou boa a ideia, já que não precisaria mais se levantar nem para fazer as necessidades. Então a mulher chamou uns homens para sepultar o preguiçoso. Puseram-no na rede e tocaram o cortejo. Na estrada, um compadre dele vinha montado a cavalo e, vendo a rede, perguntou:
— Meu compadre morreu e ninguém me avisou?
— Morreu não, compadre, mas prefere ser enterrado vivo a ter que levantar uma palha do chão. Esse homem não trabalha nem pro seu sustento, e eu já não aguento mais!
O compadre, então, ofertou:
— Para não enterrar meu compadre, eu ofereço um saco de feijão, outro de arroz e um cacho de banana.
O preguiçoso, ouvindo a proposta, espichou o pescoço para fora da rede e perguntou:
— Ô compadre, me responda uma coisa: esse feijão é debulhado?
— Não.
— E esse arroz e esse cacho de banana vêm com casca ou sem casca?
— Com casca!
Então, para surpresa de todos, o preguiçoso completou:
— Prossiga o enterro!
Maria Magalhães Borges,
Serra do Ramalho, Bahia.


Nota

A preguiça misturada à estupidez é tema, ainda, do último exemplar da seção (de Contos jocosos), O preguiçoso (56), no qual a indolência chega ao limite extremo. O professor Jackson da Silva Lima recolheu cinco versões do romance do preguiçoso, em Sergipe e Alagoas, nas quais constam o episódio da exortação da mulher e os argumentos de que se vale o marido para não levantar-se da cama — ou da rede. Como exemplo, reproduzo um trecho da versão recolhida em Buquim (SE), cantada por D. Josefa de Jesus:

— Marido, se alevante,
Vá matar uma sariema,
Nós come a carne toda,
Faz a bassoura das penas.
— Quem me dera isso agora,
Não é minha velha,
No braço de uma morena,
Adeus, saudade...

“O assunto-chave desse romance é bastante explorado em histórias de trancoso e contos populares, encontradiços em todas as latitudes. A figura interessante do preguiçoso tem despertado a curiosidade dos humildes, envolvendo-a em situações chistosas, sem no entanto torná-la desprezível.”( In: LIMA, Jackson da Silva. O folclore de Sergipe, I: romanceiro, p. 422.)

A nossa versão, narrada por Maria Magalhães Borges, é um híbrido do conto com o romance. Lindolfo Gomes recolheu em Minas Gerais duas versões e as incluiu no que chamou de ciclo do preguiçoso. Na primeira, João Preguiça, o personagem-título é um parvo que jamais digna-se de levantar-se da rede. Fica tão debilitado que é dado como morto. A caminho do cemitério, descobrem que o preguiçoso ainda estava vivo. Um dos irmãos, condoído, oferece um prato de arroz, ao que uma voz enfraquecida responde perguntando: “—... é com casca ou sem casca”. A resposta negativa precipita o desfecho cômico, com o pedido do parvo: “— Toca pro cemitério!”. Na história seguinte, o preguiçoso é um avarento, que, mesmo sendo rico, vive numa choupana, onde é encontrado pelos sobrinhos que o julgam morto. Um curandeiro ministra-lhe um unguento que o traz de volta à vida. Ao ver este pedir uma soma que julga exorbitante como pagamento, o avarento não tem dúvidas e pede para que o enterro prossiga. A história figura também, sob o título Pedro Preguiça, nos Contos tradicionais do Algarve, de Ataíde Oliveira, e na versão literária reelaborada por Alphonse Daudet, O figo e o preguiçoso. Encontramo-la também entre os Contos populares da Romênia, de Ion Creanga. A História dum preguiçoso repete os mesmos passos de nosso conto. Os habitantes duma aldeia, com medo que o preguiçoso do título contaminasse os demais com sua indolência, designam dois campônios para levá-lo à forca. A caminho do patíbulo, uma senhora, compadecida com a sorte do moleirão, se oferece para salvá-lo, levando-o a um solar, onde terá por alimento crostas de pão. Quando descobre precisará passar o molho no pão, o madraço decide-se pela morte na forca!

Nota final (por Paulo Correia)
Classificação: ATU 1951 (O arroz está cozido?)
Versões: 3 portuguesas; 3 brasileiras
Nota: Conto raro que nas Américas aparece sobretudo na zona do Caribe: Louisiana, México, República Dominicana. O seu propósito é criticar o homem como mandrião, característica normalmente atribuída às mulheres na tradição oral.