Júpiter e Mercúrio na casa de Filêmon e Báucis (de Jacob van Oost) |
Os santos caminham sobre a terra. É a lição de mestre Stith Thompson. Antes eram os deuses. Num conto que recolhi, publicado no livro “Vozes da Tradição” (IMEPH, 2018), uma mulher paupérrima, durante uma missa, vendo a imagem de Nosso Senhor crucificado, considerando a sua magreza, convida-O a ir para ir almoçar em sua casa. Esperando a visita do Divino Mestre, cozinha o único frangote que lhe resta, mas, em vez de Jesus, quem aparece é um velhinho a quem a mulher, caridosa, por três vezes, serve a comida, nada restando para o convidado divino. Acontece que o velho era Jesus sob um disfarce humano e, a partir daquele dia, sua vida muda, jamais faltando comida em sua panela ou alimento em sua roça. Uma vizinha invejosa tenta imitá-la, preparando um verdadeiro banquete, mas, quando aparece o tal velho, ordena aos criados que lhe apliquem uma lição exemplar. É amaldiçoada, perdendo tudo o que tinha.
Resumidamente, é essa a história, MT 751A* (Mulher convida
Deus para cear em sua casa). Na nota que redigi para o conto, cito um precursor
lendário, a história de FiLêmon e Baucis:
Conto religioso que apresenta algumas variações, a depender
da área em que se tradicionalizou. Não há muitas versões registradas, mas é
popularíssimo. A lição que passa é a de que a caridade deve ser sempre desinteressada,
dando-nos a entender que o dito “Fazer o bem sem olhar a quem” deve ter-se
originado de uma história semelhante. Se a origem dos motivos que a compõem é
incerta, sua antiguidade é atestada no mito grego de Filêmon e Baucis, o casal
idoso que um dia recebeu em sua cabana na remota Frígia, disfarçados em
viajantes, os deuses Zeus e Hermes. Serviram-nos da melhor maneira, mas, ao
perceberem que o vinho ingerido pelos dois sempre se renovava no jarro, descobriram
que estavam diante de duas divindades. Apavorados, pensam em sacrificar o único
ganso, que guardava a propriedade, mas os deuses dispensam a honraria. Em
seguida, são convidados pelos deuses a escalarem um monte de onde veem,
atônitos, a aldeia onde moravam ser engolida por um imenso lago. Sua casa
humilde, no entanto, foi poupada e transformou-se num magnífico templo em honra
dos olímpicos, dos quais eles seriam, até o fim da vida, sacerdotes. Baucis e
Filêmon pedem, ainda, outro favor: que possam morrer juntos, no que são
atendidos. Ele transforma-se num carvalho e ela numa tília, rara metamorfose
não punitiva, e as árvores passam a ser venerados pela gente do lugar. Esta
bela história de recompensa e punição, que, como tantas outras, deve ter-se
originado dos ritos agropastoris, foi fixada por Ovídio, no canto VIII das Metamorfoses.
Stith Thompson, em seu estudo The Folktale (O conto popular, 1946, 150), em
outras palavras, explica o tema da hospitalidade recompensada, citando ainda o
conto dos três desejos desperdiçados tolamente pelos hospedeiros dos viajantes
divinos:
“In pious legends everywhere a popular theme is the incognito
wanderings of saints or other holy men, or even of gods themselves, in the
world of mortals. Ovid's tale of the appearance of Jupiter and Mercury at the
home of Philemon and Baucis and of the hospitable treatment of the unknown
guests is one of the most attractive ancient stories. In Christian lands such
adventures are usually ascribed to Christ and Saint Peter. Of such tales there
is a considerable number scattered through the collections of saints' legends
and exempla of the Middle Ages. Several have established themselves in popular tradition
and are frequently picked up by folklorists. In another connection we have
already noticed the tale in which these mysterious strangers reward hospitality
by granting wishes, some of which are foolishly wasted”.
(“Em lendas piedosas em todos os lugares, um tema popular são
as andanças incógnitas de santos ou outros homens santos, ou mesmo dos próprios
deuses, no mundo dos mortais. O conto de Ovídio sobre o aparecimento de Júpiter
e Mercúrio na casa de Filêmon e e Baucis e sobre o tratamento hospitaleiro de
convidados desconhecidos é uma das mais atraentes entre as histórias antigas.
Nas terras cristãs, essas aventuras são geralmente atribuídas a Cristo e São
Pedro. De tais contos, há um número considerável espalhado pelas coleções de
lendas dos santos e exemplos da Idade Média. Vários se estabeleceram na
tradição popular e são frequentemente escolhidos por folcloristas. Em outra
conexão, já vimos a história em que esses estranhos misteriosos recompensam a
hospitalidade concedendo desejos, alguns dos quais são tolamente desperdiçados
”.)
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