quarta-feira, 15 de setembro de 2021

Tia Lili ou Quando a vida também é sonho

 

Isaulite Fernandes Farias, que, casada, tornou-se Isaulite Fernandes Guedes, para mim será sempre Tia Lili. Tia Lili da Ponta da Serra, da casa que fica depois do tanque da estrada, de frente para o cruzeiro que seu avô, e meu avô, Major Ramiro Farias, ergueu no alto da Serra Geral. Tia Lili de Tineco (Manoel Farias Guedes), seu primo em segundo grau e esposo até 2008, quando um caminhão descontrolado interrompeu a união de décadas. Tia Lili das xiringas e ximangos, das conversas ao pé do fogo, das histórias sem fim. Tia Lili dos benditos, das lapinhas montadas com tanto carinho que só faltava o menino Deus pequenino levantar-se da manjedoura em manifesta gratidão.

 

— Menino Deus pequenino,

Cadê sua camisinha?

Esqueci lá na lapinha,

Na beira do capinzinho.

 

— Menino Deus pequenino,

Cadê seu botão de rosa?

Botão de rosa fechada,

Depois de aberta beijada.

 

— Menino Deus pequenino,

Cadê seu botão de ouro?

— Esqueci lá na lapinha,

Debaixo do meu tesouro.

 

Tia Lili da latada florida, das plantas sempre verdes, mesmo nos tempos de seca e mesmo que a água precisasse ser “apanhada” no tanque, a uns 200 metros de sua casa. Tia Lili fechou os olhos no último 29 de agosto. Hoje descansa no campo santo de Igaporã e não na Ponta da Serra onde nasceu, a 29 de abril de 1937, e onde repousam, desde o início da década de 1980, seus pais Joaquim e Luzia.

Tia Lili aos quatro anos. 

Tia Lili, com quem, ao retornar para Igaporã, no ano 2001, para cursar Letras na vizinha Caetité, pude retomar o contato, antes esporádico, desde que meus pais se mudaram, no começo de 1986, para Serra do Ramalho, nas “bandas de lá” do rio São Francisco. E, pode-se dizer, entre os fatores que confluíram para que eu me dedicasse a pesquisar e registrar a tradição oral, começando pelos membros de minha família, incluo a sua generosidade, demonstrada a cada visita, em que as histórias iam sendo desfiadas, como em minha meninice, espontaneamente, uma verdadeira procissão de signos que somente os que nasceram e respiraram os ares do Brasil interior compreenderão totalmente. Lembro-me de, numa dessas vezes, a senhora contar que, numa das idas ao Brejinho, localidade com muitas minas e nascentes, estava pondo as roupas para coarar, quando percebeu, movendo-se na árvore que ficava à margem da aguada, centenas de serpentes, tantas que “parecia que uma saía de dentro da outra”. A senhora contou ainda que não se moveu do lugar, pois não podia perder a viagem, e imaginou que, fosse o que fosse aquilo, a aparição fantasmagórica – era disso que se tratava – não lhe faria mal. E que, quando olhou uma segunda vez, tudo havia desaparecido, restando apenas a árvore com troncos, galhos e fronde. A perfeita descrição de um sonho.

Passando praticamente a vida toda no sítio onde nasceu, tendo somente depois de aposentada como trabalhadora rural se deslocado para Igaporã, o que não a impediu de dividir o tempo entre a roça e a cidade, seu repertório oral era dos mais ricos, e ia muito além da matéria tradicional. Era também uma espécie de guardiã das histórias familiares, algumas delas se confundindo com a lenda, como um relato da época do mata-maroto, por ocasião da Independência do Brasil, no qual um menino, para escapar de uma chacina, escondeu-se num forno à lenha, tornando-se o único sobrevivente da família. Da nossa família. Seria este menino Justiniano, pai de Ladislau, pai de Ramiro, pai de Joaquim, pai de Tia de Lili e de Valdi, este meu pai. Justiniano era também pai de Manoel e José Farias, respectivamente pais de minhas avós Luzia e Alaíde. E avô de Gustavo, pai de Manoel Guedes, esposo de Tia Lili.


Tia Lili costumava contar também uma história passada com a sua avó (e minha bisavó), Josefina, que morava numa casa no Barreiro, no início do século XX. Ela havia, há poucos dias, descansado de uma gravidez, e o resguardo a impedia de se levantar. O seu marido, por necessidade, se ausentara justo naquele dia. E as crianças foram obrigadas a servir ao andarilho: primeiro ele exigiu comida, no que foi atendido. Depois, reclamando do frio, fê-los acender uma fogueira na própria varanda em que se instalara. Acabada a lenha, os meninos passaram a queimar sabugos de milho. Além de reclamar o tempo todo, o "visitante" prometeu, quando a fogueira se extinguisse, dar cabo de cada menino, a quem chamava, indistintamente, "Cu de sabugo". Um deles, escapando pelo fundo da casa, foi chamar os tios, irmãos de Josefina, que moravam perto. Quando estes chegaram, o "visitante" havia fugido, sem fazer mal a nenhuma das crianças. O fato é que a sua passagem ficou gravada indelevelmente na memória das crianças. Quando queria assustar os netos, Josefina contava a história da Menina e do Velho do Surrão, aquela mesma dos brincos de ouro esquecidos na fonte, associando-a com o fato testemunhado pela família. E o visitante foi rebatizado como "Seu Dezembro", pois foi neste mês que ele aparecera.

Os raros e generosos leitores de minha obra etnográfica hão de se lembrar de, pelo menos, uma dezena de contos populares em que Isaulite Fernandes Farias figura como “informante”. De cabeça, posso citar alguns: Nossa Senhora e o favor do bêbado, O nascimento de Cristo, Adão e Eva, São Pedro tomando conta do tempo, A moça tecelona, A mentirosa, O ingrato etc. Todos aprendidos com a mãe. O repertório só não é maior, pois os demais, geralmente contos de encantamento e religiosos, foram narrados por meu pai. Ainda assim, ela me ajudou a recuperar detalhes que ele, como é natural em quem reconta histórias tradicionais, havia esquecido. Também foi a fonte do romance Juliana e D. Jorge, que reproduzi no livro Breve história da Literatura de Cordel.

Tia Lili, como eu disse acima, não fez grandes viagens (creio que nunca deixou a Bahia); mas fez do pedaço de terra em que nasceu um jardim do qual brotaram muitas histórias. Suas quatro filhas, Lúcia, Dalva, Lourdes e Teresinha, e seus netos e netas têm muito de que se orgulhar. Abençoados os que a conheceram e com ela conviveram num tempo e num lugar em que nem sempre era necessário estar dormindo para se sonhar. E, acreditem, houve um tempo em que o sonho não estava separado da vida. Tia Lili viveu esse tempo.

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