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Sol, Lua e Talia, versão napolitana de "A Bela Adormecida", ilustrada por Warwick Goble |
Marco Haurélio
São muitas as edições das obras dos Irmãos
Grimm em português (completas, compactas, adaptadas, mutiladas) para todos os
públicos e paladares. Não se diga o mesmo de coletâneas mais antigas e raras,
dos povos mediterrânicos, em especial as da Itália, terra de abundante
colheita: Le piacevoli notti, de
Giovanni Francesco Straparola, sobre quem pouco se sabe, ou do Pentameron, de Giambattista Basile, para
ficarmos apenas nos contos populares italianos e suas versões literárias dos
séculos XVI e XVII. Embora não fossem coletores, no sentido moderno do termo,
não há dúvidas de que ambos, Straparolla e Basile, ouviram muitas das estórias da oralidade,
adaptando-as conforme as convenções vigentes em cada época. Straparola, cujo
nome, que parece ser um apelido, significa “o que fala demais”, é uma
personagem um tanto misteriosa. No Brasil, apenas a Landy Editora lançou uma
versão incompleta das Piacevoli notti,
traduzidas como Noites agradáveis,
por Renata Cordeiro, em 2006. De O Conto dos Contos, conhecido também como
Pentameron, lamentavelmente, não
havia tradução para o português. Quem quisesse acessar a obra-prima de
Giambattista – ou Giovan Battista – Basile teria de recorrer a edições
estrangeiras.
Para nosso gáudio, agora, temos em
mãos, vertida para o português, uma das obras mais importantes do barroco
italiano. A iniciativa, cujo valor histórico e cultural não pode ser mensurado,
coube a Francisco Degani, tradutor de Pirandello e Manzoni, que foi-se abeberar
do dialeto de Nápoles do tempo de Basile, cotejando-o com o italiano moderno,
seguindo as lições do mestre Benedetto Croce, que assina o prefácio da clássica
edição italiana. As marcas da oralidade, o vozerio das ruas e a villanella dos campos, o cheiro dos
mercados e das vielas, o calão dos portos, os longos diálogos que, por vezes,
parecem monólogos, pontuados por anexins, metáforas e frases de efeito, tudo é
parte de um cortejo mágico em que ressoa forte a poesia do povo, a poesia da
vida.
Os Irmãos Grimm, em uma apreciação
crítica publicada como apêndice aos Marchen,
consideravam, injustamente, o Pentameron
uma imitação do Decameron, de
Boccaccio, embora reconhecem que a sua base era mesmo a tradição e que “durante
muito tempo esta coleção de contos foi mesmo a melhor e a mais rica de todas as
que foram compostas por uma nação”.
Mais adiante, estabelecendo um contraponto entre os contos italianos, vivazes e
brincalhões, e os alemães, mais sóbrios e equilibrados, sentenciam: “Há assim
um contraste marcado com o estilo tranquilo e simples dos contos alemães. É
riquíssimo em expressões idiomáticas pitorescas, proverbiais e espirituosas que
o autor tem sempre à disposição e que normalmente acertam em cheio”.
Não escapam aos Grimm, também, o excesso de metáforas, certamente sob influxo
de Rabelais, além do elo de muitas estórias italianas com os contos de sua
recolha, apontando trinta e três exemplares, como Petrosinela (Rapunzel), Nennillo e Nennela (Hansel e Gretel),
Os três reis animais (A bola de Cristal), Sol, Lua e Talia (A bela
adormecida) etc., além do vínculo do conto O dragão com o mito de Siegfried, herói da Canção dos nibelungos.
No Brasil, apenas em publicações
avulsas, alguns contos de Basile podiam ser conhecidos. Abundam, no entanto,
nas coletâneas de contos tradicionais, desde Silvio Romero (Contos populares do Brasil), passando
por Lindolfo Gomes (Contos populares
brasileiros), Luís da Câmara Cascudo (Contos
tradicionais do Brasil), Doralice Alcoforado (Belas e feras baianas) etc. versões e variantes das estórias do Pentameron. A popularidade de Maria Borralheira, A Moura Torta, João e Maria,
além dos contos do ciclo do noivo animal, aproxima-nos de tal forma de Basile
que, ao folhearmos a sua obra, temos aquela sensação de que estamos nos
debruçando sobre algo familiar. De minha parte, nos contos de coligi, sempre
recorri ao Pentameron para efeito de
cotejo e comparação. Nos livros Contos
folclóricos brasileiros, Contos e
fábulas do Brasil, O príncipe Teiú e
outros contos brasileiros, Contos e
lendas da Terra do Sol e Vozes da
Tradição, algumas narrativas exalam o mesmo frescor das estórias
napolitanas, unidas que estão pela origem comum e pela exuberância de tipos e
motivos. Um conto recolhido em Igaporã, Bahia, chamado Angélica mais afortunada, com a história de um príncipe encantado em
um teiú, é parente em primeiro grau de O
cadeado (entretenimento nono da segunda jornada) do Pentameron. Ambos têm como ancestral o conto mítico de Apuleio, Eros e Psiquê, d’O asno de ouro, pertencendo ao ciclo do príncipe encantado em
animal em cuja demanda sua esposa terá de sair depois de, imprudentemente,
tê-lo perdido por conta da violação de um tabu relacionado à curiosidade. A
heroína, que está grávida, dá à luz na casa da sogra, onde, depois, o marido
encantado cantará uma canção de ninar para o filho (ATU 425E).
No conto napolitano, na tradução de Degani, eis a cantiga:
“Oh
belo filho meu,
se
minha mãe soubesse,
em
bacia de ouro o lavaria,
com
faixas de ouro enfaixaria,
e
se o galo nunca cantasse,
nunca
de você me separaria”.
No conto baiano, o acalanto aparece
com mais detalhes e a mesmíssima função:
— Meu filho,
se papai mais mãe soubera
filho de quem tu era,
em bacia de prata te lavava
e em toalha com fios de ouro te
enxugava.
Hoje o galo canta,
o jegue urra, o
sino toca:
contigo amanheço o dia.
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Pentameron (Nova Alexandria), em tradução de Francisco Degani. |
Por isso, os contos do Pentameron, que sempre circularam entre
nós, agora chegam vestidos de graça e de bonomia, com o toque peculiar de seu
autor/coletor, que jamais escamoteia o que têm de universal, nos quais Ítalo
Calvino, escrevendo em 1974, enxergou as cores da alvorada e do crepúsculo. Em
seu conjunto, por sinal, os contos de Basile, que oscilam entre o sublime e o
grotesco, integram o patrimônio cultural comum, que, se quisermos, podemos
chamar de inconsciente coletivo, e que faz da humanidade, em que pesem as
diferenças, e, certamente, por causa delas, uma mesma e barulhenta família.
Ensaio publicado na edição brasileira de O Conto dos Contos.