Cinderella. John Everett Millais (1891) |
Cinderela (ATU 510A) é,
sem dúvidas, o conto popular mais difundido no mundo. Charles Perrault, com sua
Cendrillon, e os Grimm, com Auschenputtell, apenas difundiram as
versões mais conhecidas da história. É a Gata Borralheira da tradição
oral de Portugal, na versão de Consiglieri Pedroso, ou A enjeitada,
registrada por Adolfo Coelho. A variante dos Irmãos Grimm que mais se aproxima
da nossa estória é A senhora Holle, que se restringe apenas à primeira
parte, sem príncipe nem casamento. A heroína é gratificada com uma chuva de
ouro pelos serviços prestados à Senhora Holle, personificação da natureza e do
mundo subterrâneo (infernal, Hell), e a invejosa é punida com um banho de pez,
que nunca lhe sairá da pele. O galo anuncia a ventura da primeira e o castigo
da segunda, como em algumas variantes brasileiras.
Recolhi três versões,
todas sob o título Maria Borralheira, além de variantes com os subtipos “Pele
de Burro (Asno)” (ATU 510B), Cara de Pau, na versão baiana que recolhi, Bicho de Palha, na de Câmara Cascudo; e Menina Boa e Menina Má, da qual
registrei uma versão, inédita, O Bicho de Sete Cabeças (ATU 480A: As
meninas e o diabo numa casa estranha). A vaquinha, auxiliar mágico da
heroína, que simboliza a alma da mãe da menina — trata-se de uma órfã —,
encarna o animal protetor, resquícios da Isis egípcia em seu aspecto lunar. O
sacrifício do animal, por imposição da madrasta, faz com que a roda da fortuna
gire a favor da heroína, propiciando seu encontro com as fadas. O sapatinho de
ouro é reflexo de um antigo rito matrimonial conservado na narrativa popular,
que faz lembrar o mito da cortesã grega Ródope que, posteriormente, desposa o
faraó do Egito.
A contrapartida masculina,
para mim, é o conto de “Goldener”, o João Ferrugem, dos Irmãos Grimm, ou O Anel de Bronze, o belo e, por vezes, cruel conto de fadas da coleção de Andrew Lang.
Registrei, recentemente, O Príncipe-Pastor (ATU 314) com elementos do ATU 326
(O jovem que queria saber o que era ter medo). O conto do rapaz careca, uma
óbvia variante, que Silvio Romero registrou, de possível origem oriental, já
aparecia nas “Loucuras de Tristão”, em que, sob disfarce hediondo, o grande
herói dos romances bretões, tentava se aproximar de sua amada, Isolda. O herói
dourado, ora exuberante, ora repulsivo, é um avatar dos mitos solares, cujos
mistérios, ligados à morte e à ressurreição, isto é, às estações do ano e aos
ciclos da vida, estão em parte preservados no nosso conto.
NOTA: O texto acima serviu de base para o quinto encontro do grupo de Estudos Viagem de Retorno ao País da Infância, ocorrido sexta, 27 de julho, na Casa Tombada.
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